Se
D. Pedro II tinha um grande, um irremediável defeito, pode dizer-se que
esse defeito era a sua bondade. Joaquim Nabuco, o famoso abolicionista,
afirmou que durante cinquenta anos o povo encontrou o Imperador sempre
de pé, na galeria de São Cristóvão ou no Paço da Cidade, ouvindo a todos
sem enganar a ninguém:
“A
sua porta esteve sempre mais franca do que qualquer outra no País. E
quando se deixava de tratar com ele, para falar aos poderosos, todos
sentiam que a vaidade da posição começava abaixo do trono”.
O conselheiro Nuno de Andrade descreveu uma audiência do Imperador:
“Às
cinco horas em ponto desci do tílburi, junto à portinha baixa onde uma
sentinela cochilava. Não se pedia licença para entrar. Tomei a escada da
direita, e fui ter a um longo salão retangular quase sem móveis, com
grandes quadros nas paredes. O Freire, criado da casa, meu conhecido,
disse-me:
— O Imperador não tarda.
Cerca
de quinze pessoas esperavam D. Pedro II, e entre elas um negro vestido
de brim pardo, sem gravata, com uns grandes sapatos muito bem
engraxados. Depreendia-se do lustro do calçado que o homem cuidara de
parecer asseado; e, como era idoso, a intenção traduzia certa altivez
nativa. Tinha ido a pé e sentia-se cansado, por isso sentara-se no chão
da galeria.
[...] Instintivamente olhamos para as portas, constantemente abertas a todos os brasileiros.
O
Imperador apareceu no extremo da galeria, e o homem levantou-se. Seria o
primeiro a falar ao Soberano, e ninguém se lembrou de lhe disputar a
precedência. O Imperador lhe perguntou:
— Então, como está? Que é que temos?
—
Estou bom, sim senhor. E vosmecê? Eu venho dizer a vosmecê que fui
voluntário na guerra do Paraguai. Na batalha, fiquei com um braço ferido
por bala. Curei-me, e continuei até o fim de tudo. Depois voltei e caí
no meu ofício de empalhador. Há um ano adoeci do fígado, e o Dr.
Miranda, na Santa Casa, me fez uma operação. Nunca mais tive saúde.
Agora, não posso mais trabalhar no ofício, e não tenho vintém para
comprar farinha. Na secretaria do Império há falta de servente, e eu fui
falar com o ministro. Mas o ministro não fala com toda a gente. Estão
lá uns mulatinhos pernósticos, que me dizem sempre: Você espere. Eu
espero, sim senhor; e depois os mulatinhos me mandam embora, porque o
ministro não recebe mais ninguém. Já três vezes isso me aconteceu. Então
fiquei zangado e pensei assim: vou falar ao Imperador, que é nosso pai;
ele não manda a gente embora. Ora, pois, eu queria que vosmecê me desse
um bilhetinho para o ministro…
O
Imperador chamou o general Miranda Reis, que então o acompanhava, e
disse-lhe algumas palavras. Voltando ao homem, exprimiu-se assim:
— Vá com Deus. Fico sendo seu procurador, e tratarei do seu negócio.
— Mas eu tinha vontade de mostrar àqueles mulatinhos pacholas…
— Não tem nada a mostrar. Vá para sua casa e espere.
Alguns
dias depois, contou-me o general Miranda Reis que o Imperador mandara
alojar o antigo voluntário numa casinha da Quinta, e ordenara ao
comendador João Batista que lhe suprisse a mensalidade de 40 mil réis,
pedindo desculpas de não poder dar mais. E o João Batista, honrado
mineiro, prodigiosamente econômico, amofinava-se com as frequentíssimas
decisões desta espécie, sustentando, em voz fraca e lacrimosa, que das
quatro operações o sábio Imperador só conhecia a de dividir”.