“Antônio Aniceto morreu hoje.” Recebi a curta mensagem sobre o falecimento do músico genial pelo WhatsApp. Nada mais estranho ao universo de Antônio do que uma mídia eletrônica. Ele e os quatro membros da Banda Cabaçal Irmãos Aniceto não se encantavam com nenhuma modernidade, apenas a Chapada do Araripe e os vales em torno possuíam significado real. Viajavam o mundo desejando retornar à paisagem caririense, às vidinhas simples de homens do campo e músicos da tradição. Um dia, subiram ao edifício mais alto de São Paulo e lá em cima perguntaram o que eles avistavam: o Crato, responderam. Era verdade. O Crato nunca despregava dos seus olhos.
Conheci a família Aniceto quando era criança: o pai, José, e os irmãos Francisco, João, Antônio e Raimundo, na ordem decrescente de anos. Eu havia chegado dos Inhamuns à cidade mais charmosa do interior cearense, um lugar com mata atlântica, nascentes d’água, cinemas e praças. O oposto da aridez sertaneja. Era o mês de março. Na porta de nossa casa, na Travessa Araripe, vi homens tocando pífaros de taboca, zabumba e caixa, conduzindo uma bandeira com a figura de São José. Pediam esmolas para o santo, padroeiro da Igreja do Seminário, lá no alto, ao fim de uma ladeira de pedras. Fascinado, saí acompanhando a banda, até que mamãe me alcançou e me trouxe de volta para casa. Foi um dos primeiros chamados ao universo nebuloso das artes.
Todas as festas do Crato, celebradas na cidade ou em sítios nos arredores, tinha a presença dos Aniceto. No mês de agosto, havia a novena da padroeira N.S. da Penha. Os homens subiam a serra à procura da árvore mais alta, comprida e reta, para ser o mastro da bandeira. O acontecimento ficou conhecido como a buscada do pau da bandeira, um remanescente dos rituais pagãos em que o mastro simbolizava o falo. Uma procissão de embriagados descia a serra, transportando o caule gigantesco. Quem tocava à frente, alegrando e arrastando a turba? Os Irmãos Aniceto.
E o cortejo para a malhação do Judas? Acontecia no domingo de Páscoa, depois de uma semana de brincadeiras e arruaças na quinta do Pai Véi, num sítio improvisado com pés de cana, bananeiras e cercas de vara, em algum terreno baldio da cidade. Amarravam a um tronco, no meio da quinta, um boneco com a cabeça de estopim, do tamanho de um homem. Os caretas vestidos de mulher, usando máscaras de papelão e couro de bode, alguns com barrigas postiças de grávidas e chicotes na mão, se apresentavam como filhos ou esposas do Pai Véi. Uns pândegos. Safados e fingidos, faziam trejeitos femininos, carregando nos gestos obscenos. Pediam dinheiro para beber cachaça, roubavam os sítios em volta da quinta, brigavam e às vezes se matavam. No domingo, com toda a gente caindo de bêbada, o grupo percorria a cidade, exibindo o boneco montado num jumento. Pobre Judas. Depois de lerem um testamento imoral, explodiam o simulacro e rasgavam seu corpo. Quem tocava à frente do cortejo dionisíaco? Os Irmãos Aniceto, evidentemente.
Nas entronizações, renovações, novenas, quadrilhas juninas, nos casamentos, batizados, reisados, mineiro-pau, procissões e enterros, em tudo o que se possa imaginar lá estavam os Irmãos Aniceto tocando. Eu comprara dois pratos de estanho no Recife e dera de presente à banda, mudando um pouco a sonoridade do grupo. Num tempo em que ninguém falava em mestres da cultura popular, pontos de cultura e coisa parecida, preparei uma lista de assinaturas com alguns artistas mais importantes do Brasil, e encaminhei-a ao prefeito do Crato, solicitando que fosse pago um salário mínimo mensal aos Aniceto. Apesar da fama, eles viviam em grande penúria. O prefeito mostrou-se sensível e atendeu ao pedido.
Músicos, atores, dançarinos, imitadores de pássaros e animais, fabricantes de instrumentos, contadores de histórias e pensadores, os Aniceto foram meus mestres na universidade do conhecimento humano não padronizado. Sempre os considerei homens sábios, com a mais alta capacidade de ver, ouvir, sentir e pensar. Minhas férias no Crato consistiam em visitá-los todas as noites e ficar horas conversando com eles, me instruindo sobre os mais diversos saberes. Eles tinham bem pouco e quase nada desejavam. Apesar de viverem integrados ao mundo do Cariri e do Araripe, eram cidadãos do mundo. Alcançavam o transcendente pelo simples. Riam muito, comiam com gosto, bebiam e fumavam. Nunca sofreram o mal da ansiedade. Aceitavam a ordem natural do tempo e seus acontecimentos. Jamais perguntei se eram felizes. Talvez fossem. Ser feliz significa nada temer e nada esperar? Então, eram.
Conheci a família Aniceto quando era criança: o pai, José, e os irmãos Francisco, João, Antônio e Raimundo, na ordem decrescente de anos. Eu havia chegado dos Inhamuns à cidade mais charmosa do interior cearense, um lugar com mata atlântica, nascentes d’água, cinemas e praças. O oposto da aridez sertaneja. Era o mês de março. Na porta de nossa casa, na Travessa Araripe, vi homens tocando pífaros de taboca, zabumba e caixa, conduzindo uma bandeira com a figura de São José. Pediam esmolas para o santo, padroeiro da Igreja do Seminário, lá no alto, ao fim de uma ladeira de pedras. Fascinado, saí acompanhando a banda, até que mamãe me alcançou e me trouxe de volta para casa. Foi um dos primeiros chamados ao universo nebuloso das artes.
Todas as festas do Crato, celebradas na cidade ou em sítios nos arredores, tinha a presença dos Aniceto. No mês de agosto, havia a novena da padroeira N.S. da Penha. Os homens subiam a serra à procura da árvore mais alta, comprida e reta, para ser o mastro da bandeira. O acontecimento ficou conhecido como a buscada do pau da bandeira, um remanescente dos rituais pagãos em que o mastro simbolizava o falo. Uma procissão de embriagados descia a serra, transportando o caule gigantesco. Quem tocava à frente, alegrando e arrastando a turba? Os Irmãos Aniceto.
E o cortejo para a malhação do Judas? Acontecia no domingo de Páscoa, depois de uma semana de brincadeiras e arruaças na quinta do Pai Véi, num sítio improvisado com pés de cana, bananeiras e cercas de vara, em algum terreno baldio da cidade. Amarravam a um tronco, no meio da quinta, um boneco com a cabeça de estopim, do tamanho de um homem. Os caretas vestidos de mulher, usando máscaras de papelão e couro de bode, alguns com barrigas postiças de grávidas e chicotes na mão, se apresentavam como filhos ou esposas do Pai Véi. Uns pândegos. Safados e fingidos, faziam trejeitos femininos, carregando nos gestos obscenos. Pediam dinheiro para beber cachaça, roubavam os sítios em volta da quinta, brigavam e às vezes se matavam. No domingo, com toda a gente caindo de bêbada, o grupo percorria a cidade, exibindo o boneco montado num jumento. Pobre Judas. Depois de lerem um testamento imoral, explodiam o simulacro e rasgavam seu corpo. Quem tocava à frente do cortejo dionisíaco? Os Irmãos Aniceto, evidentemente.
Nas entronizações, renovações, novenas, quadrilhas juninas, nos casamentos, batizados, reisados, mineiro-pau, procissões e enterros, em tudo o que se possa imaginar lá estavam os Irmãos Aniceto tocando. Eu comprara dois pratos de estanho no Recife e dera de presente à banda, mudando um pouco a sonoridade do grupo. Num tempo em que ninguém falava em mestres da cultura popular, pontos de cultura e coisa parecida, preparei uma lista de assinaturas com alguns artistas mais importantes do Brasil, e encaminhei-a ao prefeito do Crato, solicitando que fosse pago um salário mínimo mensal aos Aniceto. Apesar da fama, eles viviam em grande penúria. O prefeito mostrou-se sensível e atendeu ao pedido.
Músicos, atores, dançarinos, imitadores de pássaros e animais, fabricantes de instrumentos, contadores de histórias e pensadores, os Aniceto foram meus mestres na universidade do conhecimento humano não padronizado. Sempre os considerei homens sábios, com a mais alta capacidade de ver, ouvir, sentir e pensar. Minhas férias no Crato consistiam em visitá-los todas as noites e ficar horas conversando com eles, me instruindo sobre os mais diversos saberes. Eles tinham bem pouco e quase nada desejavam. Apesar de viverem integrados ao mundo do Cariri e do Araripe, eram cidadãos do mundo. Alcançavam o transcendente pelo simples. Riam muito, comiam com gosto, bebiam e fumavam. Nunca sofreram o mal da ansiedade. Aceitavam a ordem natural do tempo e seus acontecimentos. Jamais perguntei se eram felizes. Talvez fossem. Ser feliz significa nada temer e nada esperar? Então, eram.