As trombetas do tempo,
não apocalípticos ainda, já antecipam os estertores deste duro, mais ainda ano
bom de 2015. Precisamente hoje, último dia do antepenúltimo mês, amanheceu chovendo
na terra encantada do Cariri cearense, anunciando safras prenhes de estórias e
canções. Tudo previa uma manhã dadivosa.
Como vem ocorrendo ao
longo deste ano, todo sábado, bem cedo, bato à porta da casa verde de duas
janelas, número 247, da rua José Carvalho, centro do Crato. É a casa de
Abidoral Jamacaru, bardo, trovador, menestrel, cantador, similar aos bluesmen “do sul de lá onde Washington é a capital de tudo" (Geraldo Urano dixit) e aos mariachis de um pouco mais
embaixo. Para os amigos mais próximos ele é simplesmente Bida. E pra mim,
desde janeiro, é também meu professor (e mestre) de violão, que me concede
dádivas, mesmo que em dose homeopáticas, em forma de cifras, harmonias e
canções.
Precisamente hoje fui
com uma cobiça a mais: receber, de suas mãos e em primeira mão, o seu novo
disco, não à toa chamado “Dádivas - amigos e canções de Abidoral Jamacaru”. Recebi-o,
com uma dedicatória preciosa: “ao grande amigo e compositor Rafael. Com
carinho, Abidoral”. Já bastaria ser considerado um grande amigo. Agora ser chamado
de compositor, vá lá, é mais uma de suas generosidades.
Escutar o disco é um
exercício prazeroso. São treze canções (número cabalístico pra quem conhece um
pouco o lado esotérico de Abidoral) e um repertório que sintetiza uma longa,
árdua e ardorosa carreira musical, iniciada no início dos anos 1970, nos
saudosos festivais da canção do Cariri. Treze canções interpretadas por uma
plêiade enorme de amigos cantadores e tocadores, de todo o Ceará, do litoral ao
sertão, do Cariri a Fortaleza.
Nesses quase meio século
de vida artística, Abidoral, ao mesmo tempo, pouco e muito mudou. É o mesmo
cara simples, que mora ainda na mesma casa que herdou dos pais; cozinha para
si e lava a própria roupa, varre a calçada diariamente e rega o pequeno jardim
que cultiva nessa mesma calçada. Sobrevive, em parte, dando aula de violão, mas
persegue uma busca espiritual que o transforma diariamente e inspira suas
composições. Ou seja, nunca deixou de ser ele mesmo, mas nunca se contentou
consigo. Ele lapida coisas sublimes e nessa jornada ele compartilha seus tesouros.
E suas mais valiosas joias são suas canções.
O disco traz composições já
conhecidas e algumas inéditas, em termos de gravação. As “veteranas” são “Incomensurável’,
a única em que Abidoral canta, dividindo com o Ex-Perfume Azul Lúcio Ricardo; “Pra
ninar o Cariri”, entoada coletivamente por Aquiles Sales, Eveline Limaverde, Fatinha
Gomes, João do Crato, Pachelly Jamacaru e Samira Denoá; “Lá de dentro”, cantada
por Luiz Carlos Salatiel e Samira Denoá, que carrega no vocal com tons
operísticos;” “Vou no vento”, uma bela ciranda cantada por Richell Martins e
Marta Aurélia; “O peixe”, engajada parceria de Abidoral com o poeta-mor
Patativa do Assaré, interpretada por Amélia Coelho (do Zabumbeiros Cariris) e
Orlângelo Leal (do Dona Zefinha); “Canção viagem”, que se transmutou em um
vibrante reggae na interpretação da banda Liberdade & Raiz e do “peleja”
Hoosevelt Ramalho; “No princípio”, com João do Crato e Mariana Andrade, e “Mais
cedo, mais forte”, cedida do disco “Warakidzã”, de Geraldo Júnior. As “novatas”
são “Dádiva”, gravada “em família” por Teti e seus filhos Pedro e Flávia
Rogério (e mais Júlia Fiore); “A cor mais bonita”, com Edmar Gonçalves e Calé
Alencar; “Nenenzinho”, nas vozes de Clarice Trummer, Bárbara Sena, Eugênio
Leandro e Tarcísio Sardinha; “Cantei”, letra de Abidoral musicada pelo exímio
violonista Nonato Luiz e interpretada por Marcus Caffé e Rodger Rogério, e “Estrelas
riscantes”, com Aparecida Silvino e Gustavo Portela.
Não poderia deixar de
registrar a participação mais do que especial de Lifanco, que junto a Eugênio
Leandro, fez a direção musical. Muito menos da bela capa do disco que traz uma singela
foto da casa de Abidoral (e meu endereço certo todas as manhãs de sábado) de
autoria de Evandro Peixoto.
Nem precisa dizer que um
disco-tributo a Abidoral, com tão talentosos participantes e tantos ricos
detalhes, seja algo que deva ser celebrado alegre e efusivamente, como se fosse
um presente antecipado do Natal que se aproxima.
Portanto, feliz Abidoral
e próspero disco novo!
Carlos Rafael
Dias
Crato, 31 de
outubro de 2015