Especial para o Blog
do Crato
Dentre os Kariris que habitavam a
parte sul das terras do Siará, segundo Capistrano de Abreu, destacavam-se os
Inhamuns, habitantes dos sertões de igual nome; os Cariús, localizados,
sobretudo, na serra do Pereiro e nas terras compreendidas entre os rios Cariús
e Bastões; os Crateús, que se localizavam na bacia superior do rio Poti, e os Kariris,
propriamente ditos, que viviam no extremo sul do Ceará, notadamente na região
que viria a ser conhecida como Cariri cearense.
O historiador Irineu Pinheiro apresenta
os Kariris como povos migrantes e que se estabeleceram no interior do Nordeste
em tempos remotos. Seriam provenientes de “um lago encantado”, que Capistrano
de Abreu acha ser o rio Amazonas. Depois de “larga peregrinação”, margeando a
costa norte do Brasil, entranharam-se no território expulsos que foram do
litoral pelos Tupiniquins e Tupinambás. Nos sertões, habitaram as “matas da
Borborema, dos Carirís Velhos e Novos” e “fixaram-se junto ao leito de alguns
rios como o Jaguaribe, o Acaraú, o Assú, o Apodí, etc”, onde permaneceram até o
início da colonização dessas regiões, nas últimas décadas do século XVII. Como
se mostraram renitentes à empresa colonizadora, foram dominados e aldeados, mas
sem que antes tivessem resistido bravamente.
A resistência dos Kariris aconteceu
a partir de uma confederação que durou trinta anos, envolvendo tribos
localizadas notadamente no Ceará, mas também em Pernambuco, Rio Grande do Norte
e Paraíba. Chamada pejorativamente de “Guerra dos Bárbaros” foi uma reação ao
avanço de poderosos sesmeiros que se apossavam das terras ocupadas pelos
indígenas, provocando violentos conflitos. Ao final, os Kariris foram vencidos,
entre as décadas de 10 e 20 do século XVIII[2],
por expedições militares que ficaram conhecidas como “jornadas do sertão”.
Os processos de colonização e
evangelização levados a cabo, respectivamente, pelo estado português no Brasil
e pela Igreja Católica, foram tão violentos que os Kariris, já na segunda
metade do século XIX, foram dados como extintos. No entanto, conforme atestou o
historiador J. de Figueiredo Filho, no tocante aos elementos que são
referências da identidade caririense, a contribuição dos Kariris é destacada, o
que representa a força e continuidade de sua cultura no cotidiano e no
imaginário do caririense.
No que tange à produção de artefatos,
Figueiredo Filho chama a atenção para o tipo de habitação que ainda hoje é
utilizada pelo homem do campo. Este tipo de moradia, conhecida como mocambo,
apesar de ser uma expressão de origem africana, é copiada, em parte, dos
indígenas. O autor cita também o artesanato utilitário doméstico, no qual se
incluem potes, alguidares, cabaças, cuias, coités, pilão de socar, a arupemba,
abano, esteira de palhas, cestas, caçuá, cachimbos e redes. Na produção de
alimentos, uma das principais contribuições é o cultivo da mandioca, do qual
provém a produção de farinha, de fécula, chamada localmente de goma, e de massa
de puba, que são utilizadas na preparação de diversificados pratos que hoje
fazem parte do tradicional cardápio de comidas típicas regionais, como a
tapioca, o beiju, a paçoca, o mingau (carimã) e o bolo de puba. Da mesma forma,
sobressaem-se as culturas do milho, do algodão e do amendoim e a introdução na
alimentação do caririense de vários frutos da flora local, como a macaúba, o
coco babaçu, o pequi, o araçá, a mangaba, o cambuí, o araticum etc. No
vocabulário e na linguagem há também uma grande influência da cultura dos Kariris,
a exemplo da toponímia, tanto de povoações como de paragens naturais. O mesmo
pode-se se afirmar com respeito à manifestação artística popular, a exemplo da
influência sofrida pelas bandas cabaçais, representantes de tradicional
musicalidade da região caririense e de outras regiões nordestinas onde a etnia
Kariri é presente[3].
Igualmente, a influência exercida sobre
o imaginário da população ainda se dar de maneira muito forte. Só para citar um
único exemplo, temos as lendas que povoam o inconsciente coletivo da população
caririense, como o mito da Pedra da Batateira, que narra como os Kariris, aldeados
na Missão do Miranda, guardaram codificados, na sua sensibilidade, intuição e
memória, a evocação da “lagoa encantada” - lugar mítico das suas origens. Para
eles, todo o Vale do Cariri era um mar subterrâneo, cujo imenso caudal era
represado pela “Pedra da Batateira[4]”,
ao sopé da chapada do Araripe. Segundo uma antiga profecia, a “Pedra da
Batateira” iria rolar um dia e todo o vale do Cariri seria inundado, destruindo
os invasores que tinham roubado a terra e escravizado os Kariris. Quando as
águas baixassem, a terra voltaria a ser fértil e livre e os Kariris voltariam
para repovoar o vale.
O DESPERTAR
KARIRI -
No que pese a fragilidade das ações afirmativas que venham como contraponto ao
processo de silenciamento da identidade e supressão violenta da memória dos
povos tradicionais, ainda é visível a presença destas etnias, seja nos traços
físicos herdados pelos seus descendentes como na persistência de elementos
culturais a influenciar o cotidiano e o imaginário da população. Ou seja,
existe um mapa biológico e cultural que pode ser percorrido, mesmo estando com
seus traços apagados ou esmaecidos pela ação deletéria da colonização e pela
omissão de uma política de reconhecimento do legado indígena para a região.
No entanto, essa imensa dívida para com
os nossos mais antigos ancestrais parece que começa a ser debitada na conta da
história local. E, mesmo que no plano metafórico, a profecia contida na lenda
da Pedra da Batateira começa a se confirmar, visto que está em curso um
processo de recobramento e resgate da cultura dos Kariris, a partir de um
despertar que se iniciou entre os moradores da comunidade de Poço Dantas,
localizado na zona rural do Crato, distante cerca de 25 quilômetros da sede. Os
Kariris que habitavam soberanamente o vale que se estende a partir dos sopés da
Chapada do Araripe[5]
estão voltando.
Este processo teve início no ano de 2008
quando a comunidade Poço Dantas foi procurada por uma descendente dos Kariris,
chamada Rose Kariri, residente em São Paulo, mas nascida no município cearense
de São Benedito e com origens familiares no Cariri cearense. Rose Kariri
iniciou então um projeto com a comunidade com o intuito de reconstrução da
identidade que se encontrava submergida, mas com algumas marcas visíveis na
superfície do dia a dia daquela localidade. A metodologia inicial foi o de
autorreconhecimento por parte dos descendentes.
Ainda naquele ano, os Kariris da
comunidade de Poço Dantas participaram do III Encontro dos Índios Kariris, na
Aldeia Carnaúba, em São Benedito, além de participarem e uma audiência pública
realizada na Assembleia Legislativa do Ceará, em Fortaleza. Essas ações
motivaram os moradores da comunidade a planejarem a criação de uma entidade que
lhes representasse e fortalecesse suas reivindicações, bem como o
encaminhamento do processo de reconhecimento deles junto à Fundação Nacional do
Índio (FUNAI).
Essas questões, por sua vez, compuseram a
pauta do I Encontro dos Índios Kariris, realizado em setembro de 2008. Naquela
ocasião, o trabalho de assessoria pedagógica era prestado por meio da
universidade. A Secretaria de Educação do Município era parceira da comunidade
na manutenção da sala de aula indígena, com fornecimento de material e
pagamento da professora. Os Kariri contaram ainda com apoio de várias
entidades, a exemplo da Secretaria de Cultura, da Fundação Nacional de Saúde
(Funasa), da Casa Lilás, do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher
Cratense, da Rede Educação Cidadã (Recid) e da Associação Cristã de Base (ACB).
Em 2009, a comunidade foi visitada por uma
equipe de agentes culturais do Instituto da Memória do Povo Cearense (IMOPEC),
que constatou algo significativo. Como assim noticiou uma reportagem do jornal
Diário de Nordeste: “Naquela pacata localidade, as pessoas mais idosas garantem
que uma parte de seus antecessores veio de Abaiara. Vale lembrar também que
pelo menos duas anciãs contam que suas avós foram pegas a “dentes de cachorros”
e criadas em uma fazenda próxima de onde vivem. Quanto aos traços fisionômicos
que definem o biótipo indígena, eles estão presentes em vários moradores do
lugar, sendo que os demais revelam os efeitos de uma miscigenação longa”.
Após contribuir com os primeiros e
essenciais passos da caminhada, Rose Kariri se desligou do projeto, o que veio
a dar uma arrefecida no movimento, notadamente com a desativação da sala de
aula que dava suporte ao processo de reavivamento da memória identitária junto
aos moradores da comunidade.
A RETOMADA DO
RECONHECIMENTO - Recentemente,
um novo projeto, sob a coordenação do professor Marcos Ramos, da Rede de
Educação Básica do Ceará, que também se reconhece como Kariri, vem promovendo encontros
na e com a comunidade, com a participação de outras pessoas, dentre professores
universitários e alunos do ensino médio e do curso de História da URCA. Esses
encontros promovem momentos de reflexão e de depoimento dos mais idosos, com
objetivo de reconstrução da identidade étnica, além da discussão sobre a
questão do associativismo que venha fortalecer a caminhada na busca por
melhorias na sua estrutura organizacional e na infraestrutura comunitária, além
de pleitear o reconhecimento da comunidade como povo indígena.
A comunidade, que conta com 45 famílias e
cerca de 350 moradores, todos aparentados e, na sua maioria, descendentes dos
Kariris, enfrenta problemas de várias ordens, sendo que a falta de água é um
dos que persistem há bastante tempo, mesmo estando próxima do Açude Tomás Osterne
(Umari), o maior da região. Tal problema se agrava sobremodo no período de
estiagem, O único poço existente é particular e a vazão é insuficiente para
abastecer toda a comunidade. Para a Sociedade de Água e Esgoto do Crato (SAEEC),
o problema também está no gasto excessivo de água pelos moradores com a
irrigação das plantações. O Distrito de Monte Alverne, onde se localiza a
comunidade, é o maior produtor de amendoim do município. Assim, a retomada da
consciência ancestral acontece em simultaneidade com a organização da
comunidade, motivada pela necessidade de ampliar e melhorar as condições de
vida daqueles moradores.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ABREU,
Capistrano. Caminhos Antigos e
Povoamento do Brasil - Ed. Itatiaia.
COMUNIDADE
sofre com falta d'água no Crato. Disponível em >.
Acesso em: 2 jun 2014.
FIGUEIREDO
FILHO, José de. História do Cariri. v.I.
Coedição Secult/Edições URCA.- Fortaleza: Edições UFC, 2010.
PINHEIRO,
Irineu. O Cariri: seu descobrimento,
povoamento, costume. Coedição Secult/Edições URCA. Fortaleza: Edições UFC, 2010.
SANTOS,
Elizângela. Índios Kariri lutam por reconhecimento da tribo. Disponível em .
Acesso em: 2 jun 2014.
VICELMO,
Antonio.
Entidades
apóiam reorganização. Disponível em <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/entidades-apoiam-reorganizacao-1.40404>.
Acesso em: 2 jun 2014.
Notas
[1]
Professor de História do Cariri no Curso de História da Universidade
Regional do Cariri (URCA).
[2] Segundo
texto publicado por J. B. Perdigão de Oliveira na Revista do Instituto do Ceará, ano IV, 1890, "a expedição de
1727, comandada pelo Coronel João de Barros Braga subiu pela Ribeira do
Jaguaribe e foi até os limites do Piauí, afugentando os índios, matando-os e
aprisionando muitos. De tal forma que a partir daquela expedição eles não mais
apareceram para atacar as povoações e fazendas”.
[3] Sobre a
musicalidade dos índios Kariris, estudos apontam que a banda cabaçal, por
exemplo, é herança deste nação indígena, visto “o contato com os brancos
forçaram esses índios a adotarem uma espécie de reconversão cultural para
preservar a sua cultura em meio aos seus sucessores”. Ver ANGELIM, Genildo
Moreira e BRAGA, Elinaldo Menezes. A
música do começo do mundo. Disponível em <http://www.prac.ufpb.br/anais/Icbeu_anais/anais/cultura/caba%E7al.pdf>.
[4] Batateira
ou batateiras, segundo Figueiredo Filho, é uma corruptela da palavra itaytera, que em língua indígena que
dizer “água que corre, precipitando-se por entre pedras”, expressão utilizada
para designar a mais volumosa das fontes da encosta da Chapada do Araripe, a
nascente da do rio Itaytera.
[5] Termo da
língua kariri que, segundo Paulino Nogueira, significa “lugar de araras”.