O que você faria se encontrasse seu filho comendo esterco de cavalo no quintal de sua casa? A maioria dos pais, depois de um ataque de nervos, acharia que a criança pegaria uma doença. Nem essa idéia, nem o nervoso passaram pela cabeça da médica americana Mary Ruebush quando isso aconteceu com o filho dela. Geneticista e especialista em imunologia e microbiologia, ela escreveu o livro Why dirt is good (“Por que a sujeira é boa”, Kaplan Publicações, ainda sem tradução no Brasil), em que explica a importância de ter contato com microorganismos para criar um sistema de defesa forte. Ela defende que devemos deixar as crianças colocarem objetos na boca e que devemos evitar tomar remédios para que nosso corpo aprenda a detectar os organismos que realmente são perigosos e a combatê-los de forma natural. A seguir, a entrevista que a médica deu a ÉPOCA.
ÉPOCA – Qual é o tipo de sujeira que podemos chamar de “boa”?
Mary Ruebush - É a sujeira que temos contato numa fazenda ou no quintal de casa, quando estamos expostos a animais e plantas. A sujeira ruim são os germes que causam doenças. A maioria dos germes que encontramos nos animais não causa doenças aos homens. Estar em contato com os germes de animais faz nosso sistema imunológico trabalhar. Quando você encontrar os mesmos germes que encontrou nos animais, mas vindo de homens, eles não vão deixá-lo doente porque você deixou seu sistema imunológico mais forte no primeiro contato.
ÉPOCA – Qual é o limite entre a sujeira boa e a ruim? Quando ela é perigosa?
Mary - Há vários germes que são muito perigosos aos humanos e para se proteger deles, nós temos vacinas, como contra difteria e tétano. Defendo as vacinas porque elas tornam a resposta imunológica do corpo mais forte. Ao tomar, você entra em contato com o germe e, da próxima vez que seu corpo encontrar o organismo causador da doença, não terá problemas. No Brasil, há a leishmaniose, a malária e a doença de Chagas. São doenças muito perigosas e eu as colocaria na categoria de sujeira ruim. Para se proteger delas, você se protege dos insetos que as transmitem, mas não há uma vacina ou uma resposta do sistema imunológico (a leishmaniose é transmitida por alguns mosquitos que se alimentam de sangue, como o palha; a malária é transmitida por mosquitos do gênero Anopheles; e a doença de Chagas, por um tipo de percevejo conhecido como barbeiro).
ÉPOCA – Em seu livro, você diz que a era dos remédios milagrosos está perto do fim porque criamos superbactérias resistentes a eles. Como será o futuro dos remédios que vamos tomar?
Mary - Estou preocupada com isso. Os germes estão mudando para se proteger dos remédios e estão mais fortes. Eles se reproduzem numa velocidade muito maior do que a nossa capacidade de criar remédios. Há o novo caso da bactéria staphylococcus aureus resistente à vancomicina [um dos antibióticos mais potentes à disposição dos médicos]. Se não pararmos de tomar remédios do jeito que fazemos hoje e não voltarmos a fazer o que a mãe natureza nos diz, ou seja, usar nosso próprio sistema imunológico para melhorar, não teremos remédio para muitas doenças no futuro.
ÉPOCA – Quando será esse futuro?
Mary - O primeiro caso de resistência à meticilina foi descrito pela primeira vez em 1970. Em 1994, em 94% dos casos de infecção, a bactéria staphylococcus aureus era resistente ao antibiótico. A resistência dessa mesma bactéria à vancomicina é nova. Foi descrita pela primeira vez cinco anos atrás. É provável que, em 20 anos, tenhamos 100% de resistência. Eu diria que no máximo em 20 anos estaremos num mundo sem remédios para ela, e talvez isso aconteça até antes.
ÉPOCA – Qual a sua opinião sobre o uso de produtos de limpeza com bactericida em nossas casas?
Mary - Esses produtos que matam bactérias as encorajam a sofrer mutações e ficar mais fortes e difíceis de combater. Quanto mais usamos, mais as incentivamos a mudar. Há outros produtos para limpar nossas casas, como vinagre, água pura e água sanitária. Sempre encorajo as pessoas a não usar bactericida.
ÉPOCA – Você tem dois filhos. Como foi a criação deles?
Mary - Uma vez encontrei meu filho, que na época tinha menos de dois anos, no quintal de casa comendo esterco de cavalo! E por mim estava tudo bem. Não há nada num esterco de cavalo que possa causar mal a uma criança. Você deve deixar seus filhos rolar no chão, comer grama e ganhar lambidas de um cachorro. Se você permite isso, o corpo aprende o que é um germe perigoso e o que não é. Muitos elementos no meio ambiente não fazem mal. Se o sistema imunológico não sabe detectar um invasor, ele começa a trabalhar contra o seu próprio corpo e desencadear doenças auto-imunes – aquelas em que o corpo tenta matar suas próprias células. Há uma relação entre a sociedade humana ter se tornado mais e mais limpa e o aumento de alergias e doenças auto-imunes. Nosso sistema imunológico está fora de controle porque está mais forte contra ele mesmo. Ele não sabe distinguir o que é um invasor ou o que é você.
ÉPOCA – Por que as pessoas estão buscando essa cultura da limpeza?
Mary - Parte da culpa vem da mídia e da televisão. Não sei como são os comerciais no Brasil, mas nos Estados Unidos, há uma cultura de impor o medo, de mostrar que você está sempre em perigo, que deve usar produtos químicos poderosos, que você é uma péssima mãe e que deve deixar tudo o que for perigoso fora de sua casa. E esse não é o modo como a natureza planeja que seu corpo trabalhe. Nós evoluímos como espécie humana sendo expostos a milhões de organismos e nem todos são perigosos, muitos são benéficos. Obviamente precisamos de água limpa para beber e ar limpo para respirar, mas muita sujeira que os bebês colocam na boca é inofensiva.
Fonte: Revista Época - Postagem: José Nilton Mariano Saraiva