Dias atrás, abatido de forma fulminante por um inimigo indesejável e mortal - o poder destrutivo da cocaína - o competente ator-galã global Fábio Assunção, flagrantemente debilitado e em estado digno de dó, foi afastado sumariamente da tradicional novela das oito, carro-chefe do valorizado e disputado horário nobre da emissora, sob a respeitável justificativa da necessidade de internamento urgente para desintoxicação química (que assim seja e torçamos todos por ele).
Imediatamente, como que se arvorando de palmatória do mundo, a própria emissora global fez questão de colocar por trás das câmaras todo o seu séqüito de principais atores, atrizes e diretores, bem como as ouriçadas “socialites” cariocas de plantão, a veicularem, aqui para nós e inclusive o próprio Assunção, postados do outro lado da telinha, mensagens de otimismo e confiança, e votos de breve recuperação e de fé no futuro, ao tempo em que (dicção devidamente ensaiada, voz empostada e em tom professoral), veementemente condenavam o uso de drogas, alertando-nos sobre suas conseqüências danosas e nefastas.
Pura hipocrisia. Cinismo sem igual. Desfaçatez absoluta.
Sim, porque todo o país tem conhecimento, e os pobres moradores do sofrido Rio de Janeiro que o digam, que a droga poderosa e pesada, mesmo que de qualidade duvidosa, passou a ser consumida em quantidade e profusão inimagináveis, no Brasil, em meados da década de 70, quando dos incrementados embalos noturnos da Zona Sul carioca, nas badaladas comemorações em coberturas milionárias e suntuosas do Leme, Copacabana, Leblon e Ipanema, nos “luaus” privados do meio artístico em praias desertas, em “cruzeiros” marítimos de araque, que perambulavam dias e dias sem destino, sem pressa e sem rumo, a não ser transmutar-se numa “ilha” privativa de consumo desbragado, e até - pasmem ! - em hotéis cinco estrelas da orla fluminense, onde eles, os globais, quando não promotores, se faziam sempre presentes e eram figurinhas carimbadas. À época, festa onde a cocaína não reinava absoluta, onde a “branquinha” não rolasse farta e generosa, onde não houvesse possibilidade de se “viajar”... ficando, não era considerada festa, mas pura caretice e, portanto, indigna de receber um global da vida; e ninguém queria ser considerado careta...
Além do que, para estimular o consumo, havia a facilidade do então chique, famoso e recém-introduzido no Brasil “delivery” (ou entrega em domicílio) com a conseqüente desnecessidade de se arriscar a subir os morros fétidos, escuros e perigosos da cidade.
Posteriormente, e sempre difundida pelos próprios globais, o consumo obsessivo da “mercadoria” espraiou-se pelo outrora circunspeto e fechado meio intelectual carioca, pelos formadores de opinião, cantores(ras) famosos, integrantes da grande imprensa, jogadores de futebol em evidência e, num crescente rolo compressor irresistível, no seio da classe média emergente e seus filhinhos de papai desvairados e depravados.
E aí, quando o vício impôs-se, quando a dependência virou uma realidade (porquanto impregnada em todo o Rio de Janeiro), quando a sede de consumo manifestou-se insaciável, prevaleceu a velha, básica e cruel lei da oferta e da procura: se há procura, há que se ter uma oferta correspondente; ou, preferencialmente, com sobras, em excesso, suculenta até.
E, porque se tratando de um produto caríssimo com um emergente mercado potencial ávido e carente de ser atendido, o preço a ser pago pela cocaína tornou-se escorchante, inacessível, proibitivo até para certos segmentos que não tivessem “bala na agulha”; surgiram, então, as primeiras brigas, afloraram as rivalidades, vieram as desavenças, aconteceram os desencontros, longevas amizades se desfizeram, relações juramentadas e tidas como “para sempre” azedaram de vez, e a discórdia pintou com força e apetite no pedaço; como conseqüência, tombaram as primeiras vítimas, abatidas nas guerras de gangues rivais ou em simples rixas individuais de viciados repentinamente desprovidos do poder de compra.
Por sua vez e na contramão, os narcotraficantes, agora cacifados pelo excesso do vil metal e absolutamente conscientes do seu poder de fogo, armaram-se sofisticadamente com o que há de mais moderno e letal, formaram pequenos, mas poderosos exércitos, corromperam não só a cúpula, mas os próprios executores-operativos do aparelho policial, delimitaram áreas, estabeleceram regras próprias de convivência, fixaram limites, fecharam o comércio quando, onde e no momento que lhes era apropriado, impuseram a lei do silêncio e, praticamente, subjugaram a sociedade civil.
O poder público, sucateado, desaparelhado e permanentemente omisso e ausente nos morros e favelas cariocas (dizem que a partir da opção política de um determinado governador), foi publicamente afrontado, literalmente desmoralizado e imediatamente substituído pelo poder marginal; e assim, o Rio de Janeiro, terra onde a mãe natureza foi pródiga e de uma generosidade a toda prova, a outrora cidade maravilhosa, o cartão-postal do Brasil, o orgulho de todos nós, admirada aqui e além mares, considerada sem favor nenhum uma das mais belas cidades do mundo, transformou-se na praça de guerra que é hoje, numa CIDADE SITIADA e cujos pobres e infelizes habitantes vivem sob o domínio do medo e do terror diuturnos.
Até quando ??? Ou não tem mais jeito ??? Teriam perdido os cariocas, em definitivo, o bonde da história ???
Autoria e postagem: José Nilton Mariano Saraiva