
"Os compromissos de final de ano se avolumam. Por isso fiquei uns dias sem visitar os blogs da região. Tendo uma oportunidade encontrei uma postagem do Carlos Eduardo Esmeraldo a respeito dos seus mestres. A postagem já estaria muito embaixo no tempo e provavelmente meu comentário se perderia. Além do mais o professor José do Vale Arraes Feitosa além de ter sido meu mestre, foi de todos. Falar dele como filho seria disputar com seus alunos o privilégio que é só deles. Por isso para que todos percebam o quanto me orgulho do velho mestre resolvi postar este texto que foi publicado em livro organizado pela Maria do Carmo Arraes Feitosa, a nossa segunda mãe e primeirona de meus dois pequenos irmãos que tão crescidos estão e ainda os sinto pequenos: Fernando Eduardo e Diana."
*PATER. Paterno, paternal: pai, avô, antepassados, família, tribo. Pátria, Patriota ; linhagem, descendência, raça. Patriarca, compatriota, patrimônio. Padrasto, compadre, patrício. Patrono, patrão, padroeiro, patronato, patrocínio, patrocinado. Padrinho, apadrinhar. impetrar, perpetrar. Padre, padraria, padreco. Patrônimo.
A terra se abre. Um pequeno talho acontecido ao impacto da enxada. Este, originado pelo braço dele. No interior da cova as mudas de acerola são depositadas e em seguida aterradas juntamente com material fertilizador. Outro ponto do terreno é novamente aberto. E mais outros ao longo de um dia com intervalo para almoço e breve cochilo na sexta hora do dia(sesta). Cada muda é de sua autoria, pois efetivamente é a causa dela existir no mundo frutificado. Autor, causador, causa de naquele território as acerolas, assim como as bananas, virem a termo. Cada fundamento que sua vontade organiza é o início de um longo patrimônio de vida. Aquela muda beneficiada pela sua vontade, ato contínuo de regá-las, protegê-las com se fora a primeira pessoa de santíssimo destino.
Bem ali, um pouco atrás, ele passou por Xisto. Á sua frente cuidou de Carlile, arrancou uma erva incômoda que disputava o território com Tonton. Bananeiras, azaroleiras, trilhas, cercas, o mato insistente em sua voz de vento soprado, as lagartixas que correm e param, milhões de formigas, centopéias com seus pés sobre trilhas minúsculas. Como estivesse sobre um estrado em frente da sala de aula, um longo diálogo de origem, de motivos para que a marcha dos passos mundanos aconteça.
Professor. Fundador, pacificador, instituidor, iniciador, criador. Fez-se de si uma porta para a juventude. Na verdade, como naquele sítio Currais, plantou, adubou, regou e os frutos medraram para o largo do continente pátrio. Ao passo das responsabilidades de educador, trouxe consigo o humanismo da escola católica, as línguas históricas, os mitos fundadores do povo. Muito sabia da ascendência das fratrias cearenses. Como poucos, não expressou por escrito, o quanto tinha da formação do território brasileiro como espaço e história. Foi um destino de progenitor em máxima expressão. Como a maravilha do comportamento humano, quem tão cedo perdeu o pai, transformou-se no morubixaba de muitas tribos. E como poucos, teve tão presente o sinal de Deus, a primeira pessoa da santíssima trindade: Pater Nostrum.
Uma grande perda, não chore. Seja forte, pois o mundo tem sua própria vontade, Deus determina, teu papel é marchar. Seja homem! Lembrava-se do momento exato das palavras dos mais velhos. Examinando o plantio de sabiás, a inteireza das cercas, tudo vinha à mente. Ciço virá pegar mais um cesto de acerolas. Nunca teve as mãos do pai a carregá-lo pelos campos ressequidos da Aiuaba. O talento, a inteligência é o móvel que o levará para longe daquela mãe. Ela a balançar o pedal da máquina de costura. Sem pai, atento à caminhada sobre o lombo dos animais, em terras distantes, para dali se formar padre. Do latim pater: evoluído como latim vulgar patre – padre, reduzindo a *pade e finalmente retornando ao pai que não teve.
Um exílio voluntário no silêncio dos campos. Como um rito cujo átrio é o contínuo de plantas cuidadas, a vela é a água que se distribui sobre as raízes e a oração, o diálogo com a simplicidade camponesa, rindo-se da erudição depositada entre eles. De repente seus alunos, passaram para o diálogo interior, seus ouvintes mal sabiam escrever o próprio nome, mas tinham a grandeza da tradição oral tão própria daquela cultura. Poderia, com muita certeza, prosear junto aos aposentados e homens públicos na praça do Crato, mas o sítio era o seu grande discurso. Abandonou o paletó, as camisas foram se tornando simples, o couro do cinturão foi rachando, alpercatas, chapéu, a pele tostada de tanto sol. Não mais era um emprego. Uma carga horária, um conflito de interesses, como um camponês, continuava seu papel de genitor.
Tanto lutou pelo líquido precioso que irrigaria seu plantio. No pico do confisco de Collor de Mello, comprou com sacrifício malabarístico, mais algumas telhas d´água. Tinha por ventura o verde comovente da sua criação. O relevo que promete aventuras e ângulos de real beleza. Tinha o alto de onde se deslumbrava com o vale do Cariri, com o Juazeiro do Norte no horizonte. Nada se igualava ao colosso da chapada do Araripe, ocupando toda a sua visão a poente. E que luzes de intensa variegação? Sejam pontualmente filtradas através das brechas das nuvens ou em rito diurno, oblíquas, ora levantando-se em oriente, ora pendendo-se a ocidente. Ao zênite das doze horas, luz plena, sombras sobre os olhos. O cenário em que certamente o mito da origem se fez permanente entre os homens. O mito do paraíso na terra.
Sŏlitas. Solus. Saudade. Na imersão completa do trabalho. A jornada já no arremesso para completar-se. Quando a tarde já perdeu o sol por trás da chapada do Araripe, um jato impulsiona sua voz nos céus. Inicialmente um canto oculto, por isso mesmo mais misterioso, pois parece vindo diretamente do céu. Um pouco mais, se faz um quanto forte, revelando aos ouvidos as enormes distâncias em que se encontra. Vem do sul em destino ao norte. Os raios fugidios da tarde solene, o anfiteatro formado pela chapada do Araripe e seus olhos buscam a nave tracejando no céu o aerosol que deixa por rastro. Fatalmente, vem-lhe à mente as suas crias soltas em terras distantes. Saudade. Muito sentirá a falta deles. Tão frágeis, sementes saindo do útero de suas mulheres. Logo se projetando com curiosidade de tudo se revelando, pedindo explicações a papai.
E como nunca compreendeu o mito do primeiro patriarca bíblico. Abraão. O sacrifício de Isaac, o filho amado. “ E depois destes acontecimentos, sucedeu que Deus pôs Abraão à prova....” Ou cumpre a ordem Dele e é um pai renegado ou salva seu filho e é um apóstata da sua fé. Mas Abraão é obediente, confronta-se com a prova e decide-se pela ordem de Deus. Faz seu itinerário circular entre Bersabéia e a própria Bersabéia e sobe o monte santo, o monte da visão, o lugar da teofania(manifestação de Deus). Ao final a divindade sabe que ele teme a Deus.
Mais uma vez o móvel lá fora, interpõe a sua vontade ao que achava ser a realização de sua natureza. Uma grande família, como um clã, toda a sucessão contemporânea em presença um dos outros. Dos avós aos netos e bisnetos. Dos pais aos filhos. Dos tios aos primos. A saudade era o sintoma da ausência, esta era uma vontade divina. Suplantava suas forças, seus desejos, seus projetos. Olhando o avião na sua marcha indiferente ao que se passava ao rés do chão, o professor, simbolicamente, oferecia em holocausto do entardecer, os filhos e alunos que dera ao mundo.
E mais uma vez, no seu tom de voz otimista, voltava ao diálogo com os outros. Ao diálogo que era afinal o renascimento do pai que perdera quando criança. Ao se fazer pai, mestre, ao compreender Abraão, José do Vale Arraes Feitosa pregava o culto fundador.