Vida há em que a correnteza diária é todo o panorama possível. Mas há aquela em que o debulhar da vida é como uma árvore. Que se finca na terra em busca da água e dos minerais, com um tronco concêntrico em camadas de tantas eras, galhos folheados que se abeberam da luz solar e as flores que a todo tempo resultam em frutos de outras iguais vidas. É segundo esta natureza que digo, eu sou de Crato. Do profundo dos sertões, tão longe do litoral que as brisas vêm das quebradas, serrotes, feijão de corda e carne seca. Uma fome de desesperar a alma, roendo um pequi ainda cru, sorvendo um abacaxi azedo como se mel do paraíso. Ali onde vi um punhado de farinha jogado na boca seca, uma mordida na rapadura e o gole de água barrenta.
Há nesta vida uma porção de outras vidas, mas jamais um saudosismo que negue a realidade contemporânea. É que no Crato, antes como agora, a vida é severina. É como cascavel do lajedo, árido, espinhoso e religioso. Só nesse oásis do nordeste se compreende a fé desesperada desta vida que termina antes de tardar e amanhece quando ainda é madrugada. Mas não se resume o Crato, o Cariri, às levas migratórias de ida e vinda, pois não somos apenas desprovidos da terra natal. Pelo contrário. A terra natal é a providência que oferta sentido aos pronomes pessoais. A todos nós.
Quando ainda hoje tenho o desejo irrealizado de ter o mesmo Cadilac Rabo de Peixe que pelas ruas do Crato circulou com Cândido Figueiredo, é que não é o carro que me satisfaz. É a ousadia de Cândido Figueiredo, alegre, otimista, com suas gargalhadas de abrir as encostas do vale. Em que pesem interpretações, de quem trombou com o personagem, mas ninguém supera o destemido, sempre no limite do perigo, até mesmo em sua possante motocicleta através das noites do Crato. Agora falei de Alcides Peixoto do qual presenciei uma cena de bate boca no bar do Nenen quando, no limite do entrevero, ele deu uma tapa tão possante no ouvido do outro no qual este girou, para surpresa de todos, como um trapezista no ar.
E os sabores. O doce de leite de Isabel. Gerações fizeram desta iguaria uma adoração ao sublime. Pode ser, mas jamais encontrei, mesmo em Minas Gerais, um tijolo de leite igual ao de Joaquim Patrício. No ponto, não era açucarado, mas era tijolo, tinha uma consistência de caramelo, mas caramelo que se dissolvia na boca. Pode ser que seu Cícero Beija Flor tenha deixado de herança, em algum guardado da sua descendência, amostras das cadernetas de apontamento das compras das famílias da cidade. Se alguém achar algumas destas, faz uma tese de mestrado sobre o consumo de então.
E o Moacir no seu armarinho. Se provocar o Morais e o Carlos Esmeraldo, milhões de pequenas gafes surgirão. Como a freguesa que procura, com muito cuidado para não se expor à curiosidade pública, saber o preço de uma calcinha. Acha o preço salgado e sai. Nisso o espírito mascate do bom comerciante que é o Moacir sai de porta a fora, em pleno e intenso movimento, grita em busca da freguesa: EI DONA MARIA DA CALCINHA. Sim, na mesma rua o salão ABC. O espelho inconfundível, universal, a matriz pela qual se tira o todo do que é um salão de barbeiro. Toda a vida da cidade correndo pelo poder da voz humana, alguma revista para as horas de folga, a sonolência do freguês ausente, o ventilador, tesoura, pente, espuma, navalha e máquina de corta a zero.
Não esperemos que por esta rua nos fuja o maior contra-senso da minha afeição de criança. Era uma das alternativas do caminho de casa. Seguir pela ladeira velha, atingir a matança e daí para a Batateira. Passar em frente àquele pobre ponto comercial. Desprovido da variedade de outros pontos, na verdade tão somente cachaça. Eu tinha simpatia por aquele estado quase franciscano das suas instalações. Mais ainda pela sua freguesia. Pois não foi que um dia ouvi um verdadeiro discurso político contra o seu dono. Uma voz acusatória da desgraça familiar, evocando o respeito pela integridade humana à luz da religião. Fiquei confuso, afinal o acusado se tratava de um quase nada em face dos que eram quase tudo. Era Iô Iô, cujo bar era assim chamado e, dizem, que sujeito a tremendas imprecações se ousasse atraso na abertura comercial, pois os tremores antes da primeira ficavam insuportáveis.
Pois, então, a minha vida é esta árvore. Tem Socorro, Claude, Zé Flávio, Emerson, Morais, Carlos Esmeraldo, Rafael, Armando e Salatiel. E por outras floradas o Lupeu, Leonel, Rios, Domingos Barroso, Pachelly, Glória, Sávio, Ludgero, o Dihelson, Nijair, Melgaço. E a Amanda, quem dela tem notícias? O Glauco, o Tarso e tantos outros muito mais e maior que esta pequena lista.
Como um músico da cidade que campeia nas elaboradas frases que atormentam todos os compositores e dele ouço uma Morena Samba. Com esse olhar de vem pra cá. Pecando com o corpo, um calor de entrega, requebrando, requebrando. E segue como prova da negação do saudosismo resguardado, em que nada muda apenas a chama de uma saudade de fim de tarde.
Por: José do Vale Feitosa
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