Ciça do Barro Cru. Assim mesmo: prenome e sobrenome de gente. E era. Presença constante na segunda feira, sempre na rua em que estivesse a feira do barro. Eu quase que diria pioneira dos "bonecos" de barro. Não posso, pois não pesquisei se existiram anteriores a ela, mas no meu conhecimento de meio século, foi a primeira da minha memória. Ciça, falante, pequena, cabocla. Para sucesso dos meus mitos, deveria ser descendente dos Cariris, mas se não fosse, tinha certamente a etnia vaga dos tapuias. Morava em Juazeiro, terra do Padim Ciço, já se pode concluir a origem feminina do seu prenome, mas o sobrenome era manifestação de forma e cor. Os personagens da vida.
O cabo de poliça levando o preso. O dentista extraindo dente. Um padre ouvindo no confessionário. A banda cabaçal. Um reisado ou um forró com todas as peças. Mas tinha as figuras míticas, pássaros em corpo de felino, rostos que eram verdadeiras máscaras de bumba meu boi. Sim e os animais? Muitos, galinhas, pintinhos, jacarés ou um capote (galinha d´Angola) com aplicações de penas dos originais. Cores primárias, contrastantes, pontos de grande luminosidade, estreladas manchas, Ciça tinha a alma colorida. E muita alegria de viver. Deixou, em Juazeiro, uma tradição que ainda hoje repercute. Se alguém vai ao Centro de Artesanato do Mestre Nosa, estão lá os descendentes de Ciça do Barro Cru e também da Ciça do Barro Cosido. Esta última desenvolveu aí pela década de 60 e 70, máscaras de barro, planas, apenas com as saliências dos acidentes da face: olhos, nariz, boca e orelhas. Hoje, no Mestre Nosa, dezenas de artesãos fazem uma mistura das "máscaras" e dos "bonecos" das duas Ciças, numa explosão de criatividade, que ultrapassou os limites daquele mundo arcaico e chegou ao contemporâneo, arrastando na composição, como um véu de noiva, toda a mitologia que circula oralmente pelo nordeste deste a colonização e, até hoje, as mídias modernas não "desconstruíram".
Agora mesmo, olhando para esse monitor de computador e com o canto da visão enxergando a sombra das peças de barro de Ciça, lembrei-me das escalas de valor. Imagino um engenheiro, senhor das ferramentas, qual seria o olhar direto deles para aquelas frágeis peças de barro? Que utilidades teriam? Eu suspeito a resposta, mas é puro preconceito, o mais redundante erro, pois o ser humano é muito mais e muito mais que suas "personas" profissionais. Há uma forte ligação entre os códigos digitais e as peças de Ciça do Barro Cru. Não é por nada que os dois são domínio dos dedos. E não adianta meu reduzido senso racional dizer que o digital eletrônico é mera nomenclatura, pois na realidade não o é. A linguagem primária digital é o positivo e o negativo, só que a expressão destas é conseqüência da nossa visão, da nossa mente, da nossa vontade através dos dedos, mesmo que brevemente seja esta gravada a partir da voz. E Ciça, como os engenheiros, analistas, os programadores, é tão importante que esta descoberta me dar vontade de chorar de alegria (isso existe) só de pensar o quanto para mim tal conclusão tem a ver com a redenção humana. Ciça, que viveu e morreu lá no juazeiro, fazendo e vendendo "boneco" de barro na feira do Crato é tão grande quanto Bill Gates. A frase não ajuda a miséria, mas põe os valores econômicos no devido lugar.
Mas porque me lembrei, logo que o sol nasceu, de Ciça? Por que os Japoneses desenvolveram uma Rosa Azul. Ninguém foi à lua, sequer uma nova molécula foi descoberta, uma obra magistral foi concluída. Apenas o azul se imprimiu nas pétalas de uma rosa. Uma roseira toda azul se compondo com as cores naturais que de nascença têm as demais rosas, amarelas, vermelhas, cremes, rosas. Viu Zé? Agora, também, existem rosas azuis. Aonde? No Japão. Vou juntar dinheiro e buscar uma prá tu! E viva as criaturas que criam as rosas azuis.
José do Vale Pinheiro Feitosa
Um matuto entusiasmado consigo mesmo e com os outros só porque o sol nasceu.