Carlos Rafael Dias
(Professor de História da Universidade Regional do Cariri e secretário do Instituto Cultural do Cariri)
Foto: Heládio Teles Duarte
A ideia é tão simples como sublime: tornar a chapada do Araripe, nos próximos dois anos, um patrimônio da humanidade, com a chancela da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO.
A iniciativa partiu de Alemberg Quindins, diretor e fundador da Fundação Casa-Grande - Memorial do Homem Kariri, e teve de imediato a adesão do Sistema Fecomércio, através do Serviço Social do Comércio – SESC; do Governo do Estado do Ceará, através da Secretaria de Estado da Cultura - SECULT e da Universidade Regional do Cariri - URCA; e do Instituto Cultural do Cariri – ICC, além de uma grande coletividade de pessoas integrada por artistas, militantes culturais, professores, intelectuais e ambientalistas.
A CHAPADA DO ARARIPE, MONUMENTO NATURAL E HISTÓRICO – A chapada do Araripe é considerada um dos maiores destaques da paisagem do sertão nordestino, cobrindo uma área aproximada de 180 km de comprimento no seu eixo de maior comprimento (leste-oeste) e medindo de 30 a 50 km de largura (eixo norte/sul). No topo, sua área é de 7,5 mil km². Sua altitude fica entre 850 a 1.000 metros.
Ao lado do impacto paisagístico, acarretado pela monumentalidade da visão oferecida, a chapada do Araripe é inicialmente destacada pela sua estratégica função na configuração de duas importantes bacias hidrográficas do sertão central nordestino. Isto ocorre porque a chapada é dotada de um imenso reservatório de água que é distribuído através de centenas de fontes que jorram de suas encostas e irrigam os vales que a circundam.
O fato do Cariri cearense ser recorrentemente descrito como um ‘oásis do sertão’ é motivado justamente por isso, possibilitando, mesmo em meio às constantes estiagens que assolam a região, uma produção agrícola minimamente suficiente para evitar, em períodos de seca, a tragédia tão comum às áreas do seu entorno. Ademais, a chapada Araripe é um espaço dotado de grande diversidade natural, haja vista sua diversificada flora, rica em espécies de grande potencial extrativista, como ocorre com as plantas que contém óleos essenciais, látex e outras substâncias utilizadas para os mais diversos fins. A Chapada guarda também outro tesouro: minérios, a exemplo da gipsita, matéria-prima para a produção de gesso e um dos minerais mais explorados no país.
Vale destacar também que na porção cearense da Bacia Sedimentar do Araripe encontram-se vestígios de importantes capítulos da história da natureza e da humanidade, através de registros paleontológicos e arqueológicos entre 150 milhões e 9 mil anos atrás, apresentando um excepcional estado de preservação.
De acordo com o historiador cratense Irineu Pinheiro, parafraseando o grego Heródoto, “o Cariri é um presente da chapada do Araripe e caririenses os que lhe bebem as águas da nascente.” A analogia da montanha araripense com o rio Nilo e da região caririense com o Egito pode e deve ser aplicada à toda região da Bacia do Araripe, que engloba a parte mais ao sul do Estado do Ceará, o noroeste do Estado de Pernambuco e o leste do Estado do Piauí.
Alvo de diversos processos humanos de migração e colonização desde tempos imemoriais, a chapada do Araripe serviu de lugar de passagem de coletividades que deixaram como legado uma cultura pujante e plural. Sua importância se reveste de grande e crucial importância para a formação de comunidades estáveis que desenvolvem relações de afetividade para com ela e a tem como um suporte de proposições identitárias. A chapada é tida como dispensadora das condições de sobrevivência real e simbólica das populações que habitam seus vales.
A chapada do Araripe adquire, assim, contornos históricos e culturais pelas suas funcionalidades de ordem material e simbólica, passando a se constituir em um ícone da identidade territorial das regiões do Araripe e do Cariri cearense. Para além de seus aspectos puramente físicos, ela ocupa um relevante espaço no imaginário da população, tida como um elemento imagético de convergência dos olhares, afetos e sensibilidades. Entretanto, para alcançar essa dimensão cultural, a chapada deve ser classificada como um monumento que reúne elementos de ordem natural e histórica, integrada e ao mesmo tempo saliente no complexo paisagístico regional.
Assim, a sua importância extrapola a dimensão física e adentra fortemente os campos simbólico e do imaginário, constituindo-se em forte elemento de referência das projeções identitárias regionais. A abundância de água dispensada pela chapada, por exemplo, não torna férteis somente os espaços destinados à produção material da sociedade, mas também os espaços da sua produção imaterial. Não é à toa a proliferação de mitos, lendas e histórias fabulosas que têm a água como elemento central e que povoam o inconsciente coletivo regional. No sistema de crenças dos povos kariri, que em dado momento migraram para as áreas próximas da chapada do Araripe, a água é um dos principais elementos cosmogônicos, o que ensejou a elaboração de narrativas míticas que ainda hoje exercem forte influência no imaginário da população.
O PROJETO - O propósito de reconhecer institucionalmente a chapada do Araripe como patrimônio da humanidade perpassa a necessidade de compreender o território como motriz de relações sociais, tendo a natureza e a cultura como eixos. Assim, uma paisagem, conceito-chave para a compreensão e análise do território na sua dimensão física, perceptual e cultural, tem o poder de movimentar os gestos e as memórias, assim como o seu reconhecimento vem a acrescenta valores e sentidos à história.
Para isso, é preciso conservar e proteger o patrimônio da chapada do Araripe, levando em consideração as necessidades ambientais, sociais e econômicas para um desenvolvimento sustentável regional. Neste sentido, o esforço de conscientização pela educação é mais eficiente que os também necessários dispositivos legais. Estrategicamente, o projeto se propõe articular as diversas esferas formadoras das sociedades civil e política: o poder público, a iniciativa privada e o terceiro setor.
Comitê Consultivo Intersetorial
AÇÕES E ESTRATÉGIAS - O reconhecimento da Chapada como patrimônio da humanidade vem se encaminhando passo a passo. O primeiro foi a realização do I Seminário Internacional Patrimônio da Humanidade Chapada do Araripe, ocorrido de 6 a 9 de agosto de 2019, na região do Cariri cearense. No evento, foram discutidas coletivamente estratégias iniciais e assinado um termo de compromisso com o projeto.
Mais recentemente, neste mês de dezembro, foi criado e empossado o Comitê Consultivo Intersetorial da campanha, com o objetivo principal de promover, articular, garantir, coordenar e executar programas, projetos e ações em torno da proposta da candidatura da Chapada do Araripe como patrimônio cultural e natural da humanidade pela UNESCO.
Comissão Técnica
Além do Comitê, foi formada uma comissão técnica com o propósito de elaborar e sistematizar informações necessárias para o dossiê de patrimonialização da chapada que será submetido à UNESCO. A Comissão realizou sua primeira reunião no último dia 20 de dezembro, quando procurou avançar na definição das ações e estratégias que venham subsidiar o propósito pretendido. A grande preocupação a partir de agora é promover, visibilizar, preservar e proporcionar um direcionamento voltado ao desenvolvimento sustentável da Chapada do Araripe. O reconhecimento da chapada como patrimônio da humanidade deve ser uma realidade presente no cotidiano local, aceito e defendido pelas populações que dela se usufruem. Portanto, a chapada do Araripe não pode ser enquadrada nos limites conceituais de patrimônio da humanidade, mas nas amplas possibilidades de um patrimônio que gera humanidade.