A velha Praça da Sé, dos anos 70
Poucos os cratenses, aqui nascidos, possuem um amor tão entranhado pelo Crato, igual ao do professor João Teófilo Pierre! Justo ele, que veio à luz em Sobral, aonde os habitantes daquela grande cidade miram com um olhar superior e majestático para esta que, com ufania, chamamos aqui de Mui Nobre e Heráldica Vila Real do Crato. João Pierre é o mais cratense dos sobralenses...
“Notas de um Secretário” é o quarto livro da lavra do professor João Teófilo Pierre. Nesta obra, o autor estreia como memorialista. E, modestamente, já na apresentação do livro, alerta aos leitores: “Enfatizo que o movente subjacente neste livro é preservar a memória dos dados, fatos e pessoas que constituíram o universo da rede municipal de ensino cratense”.
Vai mais além o autor.
Além da preservação de reminiscências administrativas, ele incursiona pela sociologia, tendo por campo as relações sociais da sociedade cratense, na década 70 do século XX, fato, aliás, que tornou mais agradável a leitura deste livro.
Além do mais, todo o texto é um demonstrativo dos conhecimentos de que é dotado o autor. João Teófilo Pierre estudou em educandários católicos, e estes têm o efeito de marcar – nos que passam por seus bancos escolares – os valores espirituais e do humanismo, os quais proporcionam uma visão integral da pessoa. Nos diversos capítulos desta obra, encontramos termos e expressões em latim, frutos da formação que o autor recebeu no Seminário Diocesano São José de Crato e na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Muitas, muitíssimas pessoas da nova geração desconhecem o estado de espírito, o comportamento e as interações da sociedade cratense com o ambiente físico e social, nos anos 70. Vivíamos no Brasil – naqueles anos em que o autor dirigiu o Departamento de Educação, Cultura e Saúde de Crato – sob o regime autoritário, advindo do Movimento Militar de 1964. Àquela época, nas universidades públicas – cuja esmagadora maioria funcionava nas capitais dos Estados – começava a ser gestada uma tímida reação pelo retorno às liberdades políticas e ao Estado de Direito no Brasil. Diga-se, de passagem, que essa reação era quase completamente desconhecida da imensa maioria da população cratense e, quiçá, da população brasileira. As preocupações das várias camadas da população restringiam-se à luta cotidiana pela sobrevivência
Lendo os capítulos que compõem as cinco partes destas Notas de um Secretário, saltam à vista as diferenças no modus vivendi – costumes, hábitos, ética, valores, ideais, etc. – da sociedade cratense dos anos 70, quando comparada à dos dias atuais. Não podemos obscurecer, também, que os governantes daquela época eram na maioria probos. Não ocorriam denúncias de corrupção e malversação do dinheiro público, tão abundantes hoje na mídia escrita e televisiva dos dias atuais. Basta lembrar que um dos prefeitos de Crato daquele tempo, o professor Pedro Felício Cavalcanti, divulgava, todo início da noite, pelas emissoras de rádio da cidade - logo após a Oração do Ângelus – o balancete diário da Prefeitura com todas as receitas e despesas registradas no dia.
Nos anos 70, ocorria – na administração pública de Crato – o análogo ao que Monteiro Lobato definiu como “O agir pela presença”. O escritor paulista, ao usar essa expressão, fazia-o para comparar o comportamento político e ético do Imperador Dom Pedro II, deposto pelos golpistas republicanos, comparando-o aos novos costumes dos presidentes de plantão da recém-instaurada República dos Estados Unidos do Brasil (Para quem não sabe, era esse o nome oficial da nossa Pátria, pós-golpe de Estado que implantou o regime republicano entre nós).
Aliás, é interessante conhecer um pequeno trecho daquele artigo, intitulado “A luz do baile”, que alcançou ampla repercussão na elite pensante do Brasil do início do século XX:
“O fato de existir na cúspide da sociedade um símbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes cívicas. O juiz era honesto, senão por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava ao bem público, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influencia catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilizava-se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, o defraudador , o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais, passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize. A natureza propelia-o ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à iniquidade mas sofreava as rédeas aos maus instintos, à simples presença da Equidade e da Justiça no trono. Ignorávamos isso na Monarquia. Foi preciso que viesse a República, e que alijasse do trono a força catalítica, para patentear-se bem claro o curioso fenômeno”.
Mutatis mutandis, Crato dos tempos dos prefeitos probos, a exemplo de Pedro Felício Cavalcanti, poderia ser comparado com o Brasil dos tempos da administração do magnânimo Dom Pedro II.
Donde se conclui que, ao convidar o professor João Teófilo Pierre para um estratégico cargo da sua administração, o velho Pedro Felício, tinha pesado e avaliado as virtudes e qualidades do escolhido, certamente respaldado na sabedoria dos Evangelhos, quando diz: “Pelo fruto se conhece a árvore.” (Mt. 12: 33- 34).

Foi preciso, também, que viessem os dias caóticos de hoje e alijassem administradores públicos honestos do passado, para constatarmos que a corrupção no Brasil encontra-se, por assim dizer, quase institucionalizada, oficializada, dada a amplitude que alcançou. Está patente que o caos administrativo e financeiro, por que passam atualmente os municípios brasileiros decorre inicialmente da crise moral, passando em seguida pelas demais crises, com destaque para a econômica.
Felicito o professor João Teófilo Pierre, pela feliz iniciativa de escrever estas Notas de um Secretário. Mais do que remontar ao ambiente de Crato dos anos 70 do século XX – quando a sociedade lutava pelo progresso da cidade, quando havia vida familiar, quando a convivência humana era mais fraterna no trabalho, nas escolas, nas manifestações culturais, nas instituições e nos movimentos e organizações locais – este livro mostra que os valores morais são imprescindíveis à sadia convivência de uma comunidade.
Nos dias caóticos de hoje – quando predomina uma sociedade de consumo hedonista, materialista e individualista – este livro do professor João Téofilo Pierre vem nos mostrar que, mesmo numa prefeitura com poucos recursos, quando um grupo prioriza a honestidade, incentiva a criatividade e preconiza a solidariedade e o respeito entre seus membros, pode-se conseguir um marco de realizações que refletem em benefícios para toda a comunidade. Foi o que aconteceu na administração de João Teófilo Pierre, nos três anos em que exerceu a titularidade do Departamento de Educação, Cultura e Saúde de Crato. Muitas de suas realizações (Museu de Arte Vicente Leite, Faculdade de Direito, promoções culturais como o Festival da Música Regional e Salão de Outubro, dentre outros) ainda estão aí, a provar que – naquele tempo – Crato sonhava alto.
(*) Armando Lopes Rafael -- Historiador. Sócio do Instituto Cultural do Cariri, membro da Academia de Letras e Artes Mater Salvatoris de Salvador (BA) e Chanceler da Diocese de Crato.