Em janeiro de 2008, voltei de uma viagem a Cuba que durou um mês, e resultou em um livro (Viagem ao Crepúsculo, Editora Casa das Musas). Naquele janeiro, o presidente Lula visitou a ilha, e acompanhei a mobilização de dezenas de estudantes de Medicina brasileiros, para tentar uma audiência. Em pauta, a revalidação do diploma. O máximo que conseguiram foi falar com o ministro da Saúde, José Gomes Temporão.
Nos jornais e rádios estatais, a visita foi cercada de silêncio. Lula chegou, encontrou com o velho amigo Fidel, tirou fotos, tudo muito divertido e afável. Entre os muitos amigos cubanos, havia um ranger de dentes. Uma raiva interior confessada em palavras baixas. Lula jamais deu uma palavra sobre prisões de dissidentes, violações de direitos humanos, a absoluta falta de liberdade que impera na ilha.
Desta vez, Lula chegou a Havana no fim da agonia de Orlando Zapata Tamoyo, de 42 anos, um bombeiro hidráulico e prisioneiro de consciência. Após 85 dias em greve de fome, ele morreu. À noite, no necrotério, sua mãe, Reina, deu um breve e comovente depoimento, uma indignação dolorosa e profunda.
“Eu digo ao mundo. Esta é a minha dor. Meu filho foi torturado durante todo o período em que esteve preso. Foi assassinado”.
Depois de relatar as torturas sofridas pelo filho durante todo o período em que esteve preso (desde 2003), ela não esqueceu os demais infelizes que ousaram levantar a voz contra o regime:
“Que exijam a liberdade dos demais presos e demais irmãos”.
O depoimento da mãe pode ser escutado no blog da única voz possível vindo de Cuba, a blogueira Yoani Sánchez (
www.desdecuba/generaciony)
Forçado pelas circunstâncias a falar sobre a morte de Orlando, Lula respondeu assim:
“Lamento profundamente que uma pessoa se deixe morrer de greve de fome. Pelo amor de Deus, ninguém que queira fazer protesto peça para eu fazer greve de fome, que eu não farei mais”.
Quem lamenta sou eu, presidente.
A circunstância da visita permitiria, pela primeira vez, que uma voz reconhecida mundialmente trouxesse à tona um dos maiores crimes cometidos pelo regime cubano – a perseguição implacável a qualquer voz dissidente, tratados como “mercenários financiados pelos Estados Unidos”. No mínimo, uma negociação pela libertação dos que estão com graves problemas de saúde, os mais velhos, para que possam morrer perto dos parentes.
Lamento que a vítima, um bombeiro hidráulico passe de vítima a culpado. Claro, ele “se deixou morrer” na greve de fome. Havia uma carta dos dissidentes, que deveria ser entregue a Lula. Ele não recebeu e explicou o seguinte:
“Eu não recebi carta nenhuma. As pessoas precisam parar com o hábito de fazer cartas, guardar para si e depois dizer que mandam para os outros”.
Tristeza, decepção, indignação. É o que sinto pela morte de um preso de consciência, após a agonia de 85 dias, e pelo que diz o presidente do meu país, com palavras que passam pela vulgaridade. Um homem que tem planos de ser um estadista mundial, que pretende mediar conflitos. Mas vai uma confissão. Essa postura de Lula não é nenhuma novidade para mim, bem como o profundo, meticuloso e inabalável silêncio de praticamente todas as pessoas esclarecidas e de esquerda no Brasil sobre a realidade cubana.
Após o lançamento do meu livro, que mostra a vida cotidiana, o sofrimento, a penúria e repressão naquela ilha, participei de vários debates. Há os defensores radicais do regime, que me apontam o dedo e dizem que não vi os avanços em saúde e educação. Há dedos em riste, acusadores, as famosas perguntas, se vi crianças nas ruas, se vi mendigos. Em nenhum dos debates, algum defensor ardoroso perguntou ou falou sobre esta palavra que me move diariamente, e com a qual caminharei até o último dia: Liberdade.
Os cubanos não são livres. Não podem sair do país. Não podem criticar o regime na fila do pão, sob o risco de serem rapidamente presos pelos infiltrados, e condenados a 20, 30 anos de prisão, após julgamentos rápidos. Não podem escrever um artigo para publicar no Granma, pedindo respeito aos direitos humanos. Conheci de perto a azeitada máquina repressiva cubana. A rigorosa cobrança da identidade aos jovens mulatos. Os infames “Comitês de Defesa da Revolução”, verdadeiras máquinas de vigilância e delação, instalados em todos os bairros. Escutei relatos sobre a vida nas prisões de Cuba, por uma mulher admirável, que me hospedou, enquanto juntava os trocados para visitar o filho preso, a cada 15 dias.
O que está acontecendo em Cuba é uma tragédia humana que um dia será contada. A Anistia Internacional calcula em mais de 200 presos de consciência. Não mataram, não roubaram, não desviaram dinheiro. Ousaram falar, escrever, questionar. Orlando Zapata Tamoyo passou por uma longa agonia, e morreu às vésperas da chegada de um presidente que foi preso porque liderou operários, em busca de liberdade.
Zapata não se deixou morrer, presidente Lula.
Ele tinha a mesma fome que tenho, e que jamais saciou: de liberdade.
(*) Samarone Lima é jornalista, escritor e professor universitário. Nascido em Crato (CE) reside há 23 anos em Recife (PE), onde participa da vida intelectual daquela metrópole.