O OVO DE PÁSCOA
O Dr. Gesteira, por ser vizinho e amigo do Luís, era um devedor crônico da Sorveteria Glória. A estima, a admiração, o reconhecimento devotados ao Dr. Gesteira, mantinham o seu cadastro sempre sem restrições de crédito. Um belo dia, entrou na Sorveteria uma senhora da sociedade cratense. Queria comprar um ovo de páscoa. O Dr. Gesteira estava presente. Conversaram animadamente, enquanto a senhora escolhia o ovo. No momento em que ela ia entregar o dinheiro para pagar, o Dr. Gesteira, gentil e elegante como sempre, disse:
- “Não, não, não, isso aí, deixe comigo”.
E dirigiu-se para o Luís:
- “Ponha na minha conta”.
O Luís prontamente aquiesceu. Mas, pensou consigo: “este dinheiro eu não vejo mais é nunca!...”
Dias depois o Dr. Gesteira entrou na Sorveteria e disse:
- “Luís, vim pagar!... A conta não, mas o ovo!...”
O NAMORO
Da mesma forma que o Dr. Gesteira não dava a mínima para o dinheiro, também desprezava as convenções sociais. Manteve, durante certo período, um namoro com uma moça da sociedade. Era um escândalo, por ser ainda casado. Naquela época não havia divórcio. Casou uma vez e nunca mais deixava de ser casado. E o Dr. Gesteira estava pouco se lixando para isso. Aliás, esse namoro nem poderia ser considerado como tal, nos dias de hoje. Apenas costumava sentar-se num banco, no prédio da Estação de Trem, e conversar com a sua pretensa namorada. Prédio, aliás, de uma beleza ímpar, com belos detalhes construtivos. Os mosaicos, por exemplo, tinham vindo da Inglaterra. O casal sentava-se no salão da Primeira Classe, comportadamente. Não pegava nem na mão! Mas isso não evitou que um falso puritano emitisse conceito, repudiando tal procedimento do Dr. Gesteira:
- “Estava enxovalhando a honra da sociedade cratense.”
Teve o desplante de ir ao Agente da Estação fazer uma reclamação, solicitando que ele impedisse aquele absurdo, não permitindo o namoro naquele recinto. O Agente, homem educado e de bom senso, repudiou e disse que nunca iria impedir que sentassem no banco e conversassem o tempo que quisessem...

Visão do Cristo Redentor que o Dr. Gesteira e sua namorada tinham do interior do salão de Primeira Classe da Estação.
O RÁDIO INGLÊS
Dr. Gesteira chegou à Sorveteria pela manhã, como era seu costume, e pediu um café. Servia-se sempre em pé, no balcão, e bebia apenas dois goles. Nesse dia pediu ao Luís para acompanhá-lo até o seu apartamento. Chegando lá, mostrou-lhe um rádio inglês, de excelente qualidade. Então, falou:
- “Luís estou precisando ir urgentemente a Fortaleza e queria que você me comprasse esse rádio, por mil e quinhentos cruzeiros. Pode perguntar ao José Cirilo, que ele vale muito mais”.
- “Não, Doutor Gesteira. Eu adianto o dinheiro. Se o senhor faz questão, eu posso até ficar com o rádio, mas quando o senhor me pagar eu o devolverei.”
- “Não, não! O negócio já está encerrado! Me dê os mil e quinhentos e pode levar o rádio”.
E, de fato, durante muitos anos, o Luís pode ouvir, com absoluta nitidez, a programação em português, da Rádio de Moscou. E pensava no desprendimento e generosidade daquele médico, para quem o dinheiro não tinha a menor importância!
O rádio do Dr. Gesteira era semelhante a este, pertencente ao meu tio Hermógenes Martins e guardado como uma relíquia por suas filhas.
A ALMA
O Aloísio era um daqueles que ficava em volta dos grupos de figurões que constituíam as duas Câmaras da Praça: Comuns e Lordes. Era baixinho e muito inteligente. Mais ouvia, do que falava. Correu um dia a estória de que o Aloísio tinha visto uma alma. Pra quê! Foi expulsão sumária, por parte do Júlio Saraiva. Não podia nem mesmo chegar próximo do grupo.
- “Mentiroso safado! Com estória de alma. Onde já se viu isso”, sentenciava o Júlio.
Participava da “Câmara dos Comuns” o Dr.José Nilo, dentista, pessoa de finíssimo trato, muito inteligente. Dono de uma biblioteca invejável e de um senso de humor inigualável. O Dr. “Zé” Nilo, querendo botar fogo na fogueira, falou:
- “Ô Júlio, você é homem inteligente, de opinião formada. Por que não deixa o Aloísio voltar pra perto do nosso grupo! Talvez ele possa até esclarecer essa estória da alma!”
E o Júlio, irredutível. Até que um dia permitiu que o “vidente” voltasse, mas com a condição de não falar nessa estória besta e mentirosa dele! Assim, o Aloísio pôde voltar “aos quadros constituintes vigentes”, como dizia o General Lott.
Passados alguns dias, o Dr. Zé Nilo voltou à carga:
- “Aloísio, que estória estranha essa tua de ter visto alma?”
- “Não Doutor, eu vi mesmo! Não sou de mentir, não!”.
E o Júlio já começou a ficar nervoso! Quando isso acontecia, começava a coçar os ombros. Com o braço direito, passando por sobre a cabeça, coçava o ombro esquerdo. E o contrário, com o braço esquerdo. O Zé Nilo, percebendo o mal estar do Júlio, insistiu:
- “Ô Júlio, deixa o homem contar a estória dele!”
- “Vai, conta a tua estória mentirosa!”.
E o Aloísio, humildemente e crente, contou a sua estória:
- “Uma noite saí daqui da praça e fui à Glorinha. De lá fui para casa”.
Morava numa baixada de terreno que existia depois da Igreja de São Francisco. Embora fosse uma região pouco habitada e com muito mato, tinha uns postes que iluminavam o caminho. Prosseguiu o Aloísio:
- “Quando eu ia na vereda, eis que avisto um vulto, vindo na direção contrária! Tinha uma cabeça muito comprida e feia! Não era coisa deste mundo! Comecei a tremer. Quando eu já estava pensando em voltar correndo, eis que alma entra de mato adentro...”
Neste momento, o Júlio interrompe a fala do Aloísio, fica de pé, abre bem os braços e, aos berros diz:
- “JÁ SEI, JÁ SEI! TUA ALMA FOI CAGAR...”
O BATALHÃO
Padre Gomes
Padre Gomes de Araújo, professor de História, foi um dos principais historiadores do Crato. Ele e o Dr. Irineu Pinheiro são os autênticos “Capistrano de Abreu” da cidade. Gostava muito de uma polêmica, principalmente quando o assunto versava sobre o Padre Cícero. Considerava o milagre da hóstia uma grande farsa. Sobre a batina usava uma capa que estava sempre esvoaçante, tendo nas mãos uma inseparável pasta preta. Nela, diziam ter um revolver. Um dia a minha mãe indagou se era verdade. Ele, rindo, abriu a pasta e mostrou para ela, que viu não ter revolver coisa nenhuma! Pela manhã, quando passava pela Praça Siqueira Campos rumo ao colégio, gostava de um dedo de prosa com o Júlio Saraiva. Era um dos poucos padres que falava com o Júlio, famoso por ser um pesquisador da vida privada dos padres e divulgar as suas fraquezas. E o Padre Gomes:
- “Como vai Júlio, já se converteu?”
- “Não, padre, vou esperar pela outra vida, que dizem que existe, para eu me converter! Eu vou lá me converter, padre! Lá vem você, agora, querer me converter!”
E o Padre Gomes achava graça! E o Júlio continuava:
- “Na certa o senhor já celebrou uma missa e invocou, com essas mãos pecaminosas, a presença de Cristo na hóstia. O senhor acredita, padre?”
E o Padre Gomes, sabendo que não ia nunca mudar a opinião do Júlio e nem querendo polemizar:
- “Não, também não”.
A CONVERSÃO
Imagem peregrina de Nossa Senhora de Fátima, tendo ao lado o Padre que a acompanhava.
O Crato estava se preparando para receber a imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima. Cada rua fazia uma decoração especial. Lembro-me que, no quarteirão da Rua Nelson Alencar, onde eu e o Luís morávamos, tinha um enorme terço, idéia do meu irmão Raimundo, localizado quase em frente à casa do Luís. Ou seja, toda a cidade estava numa grande expectativa. Era o comentário em todas as rodas.
Imagem de Nossa Senhora de Fátima percorrendo as ruas da cidade. Observamos a rua toda engalanada. O meu tio-avô Hermógenes Martins aparece à direita, de terno.
Fonte: Livro "Só no Crato" de Ivens Mourão - Direitos de Publicação concedidos ao Blog do Crato pelo autor - TODOS OS DIREITOS RESERVADOS