O PLANTÃOSempre ouvi contar sobre o senso de honestidade dos suíços. Numa banca de jornal, eles escolhem o jornal, pagam, tiram o troco, se necessário, sem o dono da banca estar presente. Quando estive em Genebra pude comprovar, e comentei com meus companheiros de viagem:
- “Para mim isto não é nenhuma novidade. Na minha cidade, no Crato, na alfaiataria/bodega do Almir isto acontece”.
Almir, um torcedor símbolo do Flamengo.O Almir tem uma alfaiataria, à qual agregou uma pequena mercearia, cujo produto principal e quase exclusivo é a cachaça. Tornou-se um ponto de reunião dos amigos, principalmente funcionários do Banco do Brasil. Alguns iam para beber um trago ou simplesmente bater papo, no final do expediente. Ali, o assunto principal era o futebol e, quase sempre o Flamengo. Quando chegava a hora do jantar, o Almir, simplesmente, dizia que ia jantar e saia. Deixava a bodega entregue aos amigos. E eles continuavam bebendo, medindo corretamente os tragos, pagando e passando o troco. O dinheiro ficava numa gaveta velha. Ao voltar, continuava no trabalho de alfaiate e nem queria saber sobre o
“caixa”. Um dia o Almir comentou que estava querendo colocar uma porta de aço, de enrolar, no estabelecimento dele. Pintar uma banda de preto e a outra de vermelho, as cores do Flamengo. Mas estava faltando o dinheiro. E os amigos, indiferente aos times que torciam, não titubearam:
- “Não, por isso não, Almir. Nós fazemos uma cota e você instala estas portas”.E assim foi feito. Mas, quando foi para executar o serviço, o estabelecimento tinha que ficar uma noite sem porta. Os amigos resolveram de maneira muito simples:
- “Pode deixar, Almir, nós ficamos aqui de plantão”.O Almir foi para casa dormir e os amigos ficaram a noite inteira bebendo, cuidando do estabelecimento e fiscalizando o serviço. E o mais importante, pagando religiosamente todos os tragos. Na manhã seguinte, ao chegar, o único comentário que o Almir fez para os bêbados foi:
- “E aí, o apurado foi bom?”- “Taí na gaveta, pode conferir”.O SÓCIOO Luís, no período em que morou no Rio de Janeiro, trabalhou numa empresa que vendia material esportivo, a Superbol. O dono era dirigente do Flamengo e por isso, outros dirigentes, como também jogadores, estavam sempre visitando a loja. O Luís fez grande amizade com todos eles, principalmente, por ser também flamenguista. Quando voltou para o Crato, deixou o endereço e o convite para que o visitassem. Um filho de um dirigente do Flamengo ia casar com uma moça de Santana do Cariri. O pai do rapaz resolveu conhecer a família da futura nora. Quando soube que passaria pelo Crato, o pessoal da Superbol aconselhou-o a procurar o Luís. E assim foi feito. A primeira providência do Luís foi levá-lo para conhecer o maior torcedor do Flamengo, o Almir.
O dirigente ficou vivamente impressionado. Tudo, na alfaiataria/bodega tinha o símbolo do Flamengo. As portas, as garrafas de cachaça, o ferro de passar, o dedal. Quadros e mais quadros de times campeões, bandeiras do Flamengo etc. Porém o que mais impressionou foi o profundo conhecimento da história do clube. Partidas memoráveis, jogadores famosos, gols inesquecíveis. Conversaram sobre o Flamengo 1 x Vasco 0 que deu o título de tri-campeão de 42/43/44. O detalhe do gol do Valido (argentino), no último minuto. E o Almir dizia:
- “E ainda foi de mão!!!”O dirigente se derreteu de admiração pelo Almir, prometendo mandar, o que efetivamente o fez, uma camisa do Flamengo, que era guardada como relíquia e somente os dirigentes possuíam. A camisa foi encomendada e veio com um defeito de fábrica - tinha uma listra a menos – Por isso recolhida, mas ficou como uma raridade, de posse apenas dos dirigentes, e agora do Almir. Na saída, encantado com a simpatia e simplicidade do Almir, teve o mesmo sentimento dos amigos das rodadas de cachaça da bodega. Perguntou-lhe porque não era sócio do Flamengo. Alegou a dificuldade da distância, como também os recursos. O dirigente, prontamente afirmou:
- “Por isso não, Almir. A partir de agora pode se considerar sócio do Flamengo, às minhas custas”.O CANSAÇOMorei muitos anos em Brasília. Durante uma época coordenei uma equipe que dava consultoria a um projeto do Banco Mundial com o Ministério do Interior. Como Crato foi beneficiado com esse projeto, voltei à minha cidade a trabalho. Fui com um colega, Gabriel Santos de Andrade, mineiro e torcedor do Fluminense. No primeiro momento de folga levei o Gabriel para conhecer o Almir, de quem já havia falado. Chegando na alfaiataria/bodega, me apresentei como filho do Mourãozinho, outro grande torcedor do Flamengo. De imediato, perguntou se papai ainda ouvia os jogos com quartinha d’água ao lado. Era o início da década de 80, quando o Flamengo de Zico ganhava tudo. Tinha sido, num espaço de duas semanas, campeão da Taça Rio, em seguida campeão carioca, logo após campeão da Libertadores e preparava-se para ser campeão do mundo. Quando eu perguntei sobre o Flamengo, o Almir saiu-se com essa:
- “Não agüento mais. Não consigo nem ficar bom de um porre e já tenho que beber de novo para outro título. Estou cansado de ser campeão!”.UMA VEZ FLAMENGO, FLAMENGO ATÉ MORRER.Meu pai foi um torcedor símbolo do rubro-negro carioca. Seguiu, literalmente, o lema:
“Uma Vez Flamengo, Flamengo Até Morrer”. Foi uma paixão iniciada com o time campeão de 1939, onde brilhavam Leônidas da Silva, Domingos da Guia e já se iniciava o genial Zizinho. A paixão sedimentou-se com o tri campeonato de 1942/1943/1944. Até o final da vida lembrava-se do time tri-campeão em cima do Vasco: Jurandir, Newton e Quirino; Biguá, Bria e Jaime; Valido, Zizinho, Pirilo, Tião e Vevé. Não cansava de repetir os detalhes do gol do Valido, o do tri, no último minuto. Deliciava-se com o “choro” dos vascaínos, dizendo que o gol fora ilegal, pois o Valido se apoiara nas costas de um defensor do Vasco. Ele completava:
“E ainda foi de mão”. Para ele deve ter sido o gol do século.
No Crato, onde residiu de 1937 a 1955, era o torcedor mais famoso. Ainda hoje, os da sua época associam o nome Mourãozinho com o hábito de
“assistir” aos jogos sentado numa cadeira de balanço de tucum, de frente para um rádio holandês e com uma quartinha cheia d’água ao lado, com um copo de alumínio tampando a quartinha. Os seguidos copos d’água acalmavam o seu nervosismo nas transmissões do outro fanático, Ary Barroso. Quando faltava energia ligava para “Seu Zé” (José Pereira, empregado do Armazém onde trabalhava) para ir falar com o
“Pedro da Luz” para saber qual era o problema. Quando o
“Seu Zé” dizia:
- “Mourãozinho o problema é no gerador e vai demorar”Corria para improvisar uma bateria de carro, para ouvir o jogo do Flamengo.
Para ele todo juiz prejudicava o Flamengo. Nunca perguntava o nome do juiz e sim:
- “Quem é o ladrão?”.A morte do grande presidente Gilberto Cardoso abalou-o, como se tivesse perdido um irmão querido. Uma derrota do Flamengo o deixava de muito mau humor. Esta paixão rubro-negra transmitiu para os cinco filhos e daí para os netos e bisnetos. Sem dúvidas, será uma tradição que se perpetuará.
Presidente Gilberto Cardoso
Este é o time da final de 1944. Da esquerda para a direita: Jurandir, Quirino, Newton,Valido, Jaime, Bria, Pirilo, Zizinho, Tião, Biguá e VevéIdenticamente, nos orientou que time torcer nos outros estados. Sempre tinha alguma relação com o Flamengo. Em São Paulo era o São Paulo, porque jogava o ídolo Leônidas. Em Porto Alegre era o Internacional, pois de lá vieram dois jogadores flamenguistas: Luizinho e Bodinho. Quando fui morar em Porto Alegre já tinha o Internacional para torcer. Lá morava o Marcelo, com a camisa do colorado e transmitindo a paixão para o filho Tiago. Em Minas, o Atlético, pela mesma razão de ter vindo o jogador Lero. Em Recife o Sport, devido à semelhança da camisa, e assim por diante. Em Fortaleza, a analogia era com o fato de ser o Ceará o
“mais querido do Estado”, e devido aos ídolos Pipiu e Mitotônio. Tal paixão flamenguista não ficava impune perante os grandes rivais: os torcedores vascaínos. Uma derrota do Flamengo e o telefone da nossa casa (24.14, de veio), não parava de chamar. Até torcedores do Flamengo ligavam. E era comum, pois o Vasco era o grande time no final da década de 40 e início da de 50. Quando passamos a morar em Fortaleza (1956), já tínhamos um time para torcer: o Ceará. O Mendelssohn é o que tem maior paixão pelo Ceará. Num fim de semana veste a camisa do Flamengo e no outro, a do Ceará.
No final da vida papai assistiu, agora pela televisão, a conquista do tri-campeonato de 1999/2000/2001. Como era de praxe, na segunda-feira, fui à sua casa com os jornais, relatando a conquista, e levando um pôster. Mostrei para ele, mas não vi uma reação maior, como era comum.
A ateroesclerose senil estava embotando o seu cérebro. Mas, vez ou outra, ele nos surpreendia com um comentário próprio de quem estava na plenitude de sua consciência. Como o Ceará estava atravessando um período muito ruim, saiu-se com a seguinte frase, quando indagado sobre o Ceará.
- “Tanto apanha como dão nele”.Pouco antes de falecer esteve um período no hospital. Ficou uns dias em apartamento, outro tanto na UTI e recebeu alta, para, menos de um mês depois falecer, em casa. Em um dos dias em que se encontrava no Hospital, antes de ir para a UTI, tinha a companhia do Marcelo e do Mendelssohn. Estava repetindo uma frase, o que era próprio da doença. O Mendelssohn tentou indagar sobre o que era e ele continuava a repetí-la, mecanicamente. O Marcelo - que é médico - utilizou a técnica de fazer uma pergunta para ele esquecer aquela frase. Então, perguntou:
- “Papai, e o Ceará?”.- “Tanto apanha como dão nele”.O Mendelssohn, que estava ao seu lado, resolveu fazer uma brincadeira:
- “Papai, o seu Flamengo está do mesmo jeito. Tanto apanha como dão nele”.A sua reação foi imediata. Estava com o olhar fixo para o teto do apartamento. Meneou a cabeça para o lado onde estava o Mendelssohn. Deu aquela
“encarada”, abriu bem os seus olhos verdes, levantou mais a sobrancelha esquerda e disse, com um sorriso nos lábios e bem compassado:
- “É... mas é tri cam-pe-ão ca-ri-o-ca”.Nada mais disse e nem precisava. Caso estivesse um pouco mais lúcido teria completado:
“E em cima do Vasco!!!” Realmente, seguiu o lema que tanto repetiu:
“Uma Vez Flamengo, Flamengo até Morrer”.16 DE JULHO DE 1950Esta rivalidade Flamengo x Vasco deixou-nos na memória o seguinte fato: Domingo, 16 de julho de 1950. Papai de terno de linho branco, mamãe (sua eterna Giseuda), muito elegante, ambos conduzindo três filhos (Yara, Raimundo e eu), para a missa das nove horas na Igreja de São Vicente. O Marcelo ficara com a babá e o Mendelssohn ainda não havia nascido. Naquele dia, no Rio de Janeiro, se decidia o IV Campeonato Mundial de Futebol.
Cartaz da Copa do Mundo de 1950Ao chegarmos na calçada da igreja, uns três ou quatro vascaínos que aguardavam o início da missa na borda da Praça 3 de Maio, em frente à porta principal da Igreja, gritaram:
- “Mourãozinho, Mourãozinho, hoje nós, nós (e apontavam para eles) vamos ser campeões do mundo!!!”Papai percebeu a ironia e não titubeou e respondeu:
- “Vocês? Vocês vão jogar é com o Uruguai!!!”.O Vasco tinha oito jogadores na seleção, sendo cinco titulares e toda a Comissão Técnica era vascaína. Daí desejarem reivindicar a conquista só para eles. Ao final da tarde, no Maracanã, aconteceu o desastre perante 200 mil pessoas.
Maior público, em todos os tempos, para uma partida de futebol.O Raimundo lembrava que eu preenchi a tabela com o resultado e escrevi Uruguai no espaço de Campeão do Mundo. Uma lágrima borrou o nome. Como era de praxe aos domingos, toda a família encaminhou-se para a Praça Siqueira Campos, local obrigatório de encontro da sociedade cratense e do
“footing” dos jovens dando voltas e mais voltas na praça. Havia uma estranha cor cinza no ar, o enorme silêncio da cidade com a tristeza de todos, como a de um velório. E era mesmo. Exatos 57 anos depois esse ambiente de tristeza se repetiu. Era a missa de sétimo dia de falecimento do meu irmão Raimundo. Meu pai, naquele dia de 1950, no seu íntimo, estava satisfeito pela decepção dos vascaínos por não poderem se vangloriar do título de campeão. Na verdade, estavam iniciando a sua tradição de vice-campeão e o nome de Vice da Gama. Mas ficou, como todos os brasileiros, traumatizado com a derrota. Vinte anos depois, na Copa de 70, com a nossa vitória de 3 x 1 sobre o Uruguai pôde desabafar, ao final do jogo, exclamando diante da televisão:
Igreja de São Vicente. Em frente à porta principal, na calçada da praça, ficavam os vascaínos.- “Hoje, vocês (os uruguaios) jogaram contra o Brasil!!!”. Quer dizer, não foi contra o Vasco...Fonte: Livro "Só no Crato" de Ivens Mourão - Direitos de Publicação concedidos ao Blog do Crato pelo autor - TODOS OS DIREITOS RESERVADOS