
Meu pai por muito tempo circulou pelas esferas do Cariri. De espírito jocoso, amante dos trocadilhos, sempre teve muita presença de espírito e gostava de brincar com a língua portuguesa e suas peculiaridades.
A feitura desta crônica já o encontrou em Fortaleza, desalentado pelo desterro e nas vésperas de adoecer fatalmente. O seu relato mostra um homem tentando se adaptar a uma terra distante da sua, onde os costumes eram discrepantes daqueles que aprendera em seu país.
Tenta contar, com sua maneira peculiar, suas experiências em meio aos agricultores - seus professores de vivências e costumes. Conta, entre atônito e com gozação, os costumes, para ele bizarros do povo sertanejo com quem conviveu uma vida inteira.
Meu pai – Hubert Bloc - Era um homem inteligente e infinitamente sensível. Tinha muitos amigos, pessoas que o admiravam e até recebeu cidadania cratense, certa feita. Tinha seus defeitos, como todo mundo, mas foi um homem de garra e brio.
Para mim, foi sempre um pai amoroso e terno e é a este pai, que me faz tanta falta, que eu quero homenagear através de suas próprias palavras.
Sintam-se tocados. A vida é exemplo e vivência...
Saudades Sertanejas
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Nasci em Paris há tantos anos que nem me lembro.
Nunca tive 20 anos. A minha mocidade foi estragada pela guerra e sendo assim minha juventude não existiu, pois na puberdade, em vez de namorar eu matava pra não morrer...
Sei que denominaram-me de Hubert, o Huberto brasileiro, raro, mas assim mesmo conhecido, um Hubert que estudou agronomia, sem querer numa velha escola de agricultura bem afastada das cidades a fim de esconder-me dos Alemães que queriam eliminar um inocente do mapa-múndi.
Tudo se acaba, até a guerra!
Como pequeno agrônomo de um metro e oitenta, fui chamado pelo meu tio Bertrand para dirigir um pequeno latifúndio de vinte e dois mil hectares no Nordeste do Brasil e no Sul do Ceará. Que Padre Cícero me perdoe, estava esquecendo o principal: para recuperar o atraso casei-me e me casei muito bem, com uma mulher espetacular que só me deu satisfação, agüentando meu rojão sem desanimar – Janine.
Depois de chegar ao Ceará velho, meu nome mudou de pronúncia conforme o lugar, a pessoa, a intimidade e a instrução: Huberto, Humberto, Ibé, Uber, galego, careca, e até de Ibis me chamaram. Fiquei conformado por diversas razões: em primeiro lugar porque, apesar da boa vontade, nunca consegui pronunciar bem o Português, como manda o figurino; e em segundo lugar, só podia haver um “vice-versa”, visto que os brasileiros que me ajudaram no início do meu trabalho no Ceará, não sabiam “um pingo” de francês e não precisavam mesmo conhecê-lo, como também não o queriam. Pelo menos tenho uma boa desculpa porque, embora tenha passado uma vida no Cariri, isto é, mais de um quarto de século, aprendi a falar com romeiros alagoanos, pernambucanos, paraibanos, parnaibanos, e mesmo cearenses, todos analfabetos o que não facilitou minha tarefa de selecionar um sotaque menos duvidoso.
“Feche a porta mode o vento”, dizia meu jardineiro; a minha cozinheira sempre me perguntava: “posso coisar o almoço?”; prefiro não falar da minha copeira que me confessou um belo dia que não tomava banho fazia dois anos com medo de congestão !!! Por uma vez minha alergia nasal crônica me serviu de alguma coisa!
Dirigir oitocentas famílias de matutos... (aproximadamente de quatro a cinco mil pessoas, pois as romeiras sempre foram prolíferas e mais férteis que os terrenos cultivados por seus maridos) ... não é tão fácil quanto parece, quanto mais para um indivíduo de fala difícil ou atrapalhada. Aliás, conforme o último recenseamento, notei que meus rendeiros trabalhavam muito mais à noite em casa do que de dia nas roças.
Em pouco tempo calculei que eu tinha que lutar sozinho contra trezentas peixeiras, cento e cinqüenta facas de aço forjado em Juazeiro do Norte, mais duzentas foices, cento e quarenta roçadeiras bem amoladas, sem contar uma porção de “lazarinas” e um bocado de velhos Taurus enferrujados. Mas como velho guerreiro e herdeiro de uma família teimosa, nunca tive medo e nunca matei um deles a não ser de vergonha, contando à minha maneira, qualquer história mentirosa de veado de quatro pernas rápidas, para passar o tempo monótono das longas e solitárias noites caipiras com humilde iluminação de candeeiros.
Um estranho precisa de longos meses para se acostumar a viver num ambiente deste cheio de gente rústica, porém mais fidalga do que os burgueses da Aldeota, embora sem noção de leitura e de escritura, longe da civilização, afinal, meio-selvagem.
Aprendi que às pressas que, no mato, Pai tinha algum valor e Filho nenhum, porque um “pai d’égua” no sertão cearense é um homem de bem, muito bom, pra não dizer ótimo, palavra que não existe no dicionário camponês, quanto a “filho de uma égua” é um conjunto de palavras que deveria ser apagado do dicionário porque se transformou em um insulto horribilíssimo.
A virgindade é sagrada em todo o sertão, portanto os homens têm todos os direitos e as mulheres nenhum! Banquei durante meses e meses e meses o advogado, o juiz sem juízo, o médico, enfim, o conselheiro, porém a inteligência nasce do berço e um matuto analfabeto, mas hábil, cada vez que conseguia agradar uma infeliz fraca, defendia sempre seus pecados mortais como também seus interesses com quatro falsas testemunhas que juravam ter cooperado em abrir um caminho errado... Só uma vez encontrei um caso fácil de resolver: um jovem simplório, Antonio Simplício, apaixonado por uma vítima de vários “amadores” , a Maria da Conceição, filha da viúva Maria de Fátima, pediu a mão desta primeira à segunda. A mãe aceitou com prazer, mas como velha sincera e positiva, viu-se obrigada a confessar que sua filha mão era mais “moça”. O rapaz bem comportado, sentado a mais de três metros e meio da jovem (que usava um vestido comprido, sem decote e de mangas também compridas), levantou-se e replicou: “Não vale nada, também não sou mais moço”.
Além de aprender, também apanhei no comecinho de minha vida campestre. Recém chegado nessa imensa propriedade na qual suei tantos anos, quis ajudar uma dona em estado “desinteressante” bem adiantado que carregava na cabeça um pote d’água que pesava, no mínimo, vinte quilos. O resultado foi o seguinte: a dita dona que era morena ficou branca e eu que sou branco fiquei vermelho; ela correu com “carga” e tudo depois de minha proposta amável e natural, fugindo ligeiro pra sua casinha de taipa de onde saiu um indivíduo mal encarado querendo me engolir. Moral da história: Esqueça a educação, a galanteria, a delicadeza; seja bruto para evitar aborrecimentos.
Para animar o pessoal da fazenda, de mês em mês, organizava uma festinha ou melhor um “samba”, denominado forró em certos lugares, porém com a experiência, notei que danças, cachaça e mulheres não se davam juntas. Tive que utilizar uma polícia particular para evitar alvoroços no meio da música, pois a aguardente torna o homem do mato valente e cego a partir de meia-noite e meia... Qualquer mulher brancosa ou morena, sendo solteira ou parecendo ser, não podia recusar uma dança ao dançarino amador cabeludo ou careca, cheiroso ou fedorento que pagasse a cota da “orquestra”. O pior é que cada um se achava com direito absoluto de “cortar uma parte” isto é, de pedir a um colega agarrado com uma menina de terminar esta dita parte com sua companheira de dança. Oh perigo!!!
Gosto muito de dançar seja samba, baião, xote, ou mazurca, mas evidentemente depende com quem. No mato é preciso ter muita sorte, coragem ou nascer sem nariz para suportar mais de meio minuto com as meninas “lindas de morrer”. Essas belezas agradabilíssimas de longe, de perto são insuportáveis porque todas usam (quando usam) desodorante de última classe que não se une com transpiração e a falta de sabonete torna mais ainda eflúvios os seus sovacos; os seus cabelos brilhosos atraem moscas a vinte metros de distância porque usam e abusam de óleo de coco rançoso “do tempo do bumba”. Aliás muitas delas têm um açude bem perto de casa, porém a preguiça e o medo de água fria, o pudor e a falta de maiô impedia as donzelas de tomar banho e assim, acabavam por desgraçar o olfato de um homem civilizado. Que lástima!! Meu Deus, afastemos a catinga da caatinga!
[...] O sítio onde morava era cercado de serras, planaltos e terrenos acidentados, assim sendo a televisão não conseguiu espalhar-se convenientemente nessa região esquecida onde labutei tantos anos, razão pela qual por relaxamento e por falta de divertimento , fabriquei seis filhos que, graças a Deus, com baião-de-dois, beijus, fubá, rapadura, mel e alfinim (as batidas só ficaram pra mim), cresceram e alcançaram todos eles, machos e fêmeas um metro e setenta e cinco. Estava mentindo: havia um divertimento: a caça ! Nunca faltaram marrecos, patarronas, paturis, mergulhões, galinhas d’água e veados para dar expansão ao gênio da minha espingarda predileta, mas o que mais cacei foram aborrecimentos.
Como já disse mais acima, eu dirigia muita gente e muita gente dá muitos eleitores. A minha felicidade foi que, embora falasse ruim, escrevia bem, mas a infelicidade foi que apesar de meus esforços, a política não me botou para frente há anos atrás. Naquela época, bastava saber assinar o nome para poder votar. Assim sendo, inventei escolas; procurei semi-analfabetos para ensinar aos totalmente analfabetos, treinei para escrever com a mão esquerda para mudar meu manuscrito, labutei, suei, gastei o que não tinha, consegui mais de setecentos eleitores nos quatro municípios que rodeavam a fazenda e fiquei bastante “deputado” por não ter conseguido nada para mim a não ser promessas e pouca consideração... É assim mesmo!
O Joaquim Andrade, mulato de olhos esverdeados, imberbe, mas de muitos cabelos ruins e boca de beiços revirados, em pouco tempo aprendeu a assinar seu nome , mas nunca conseguiu ler. Ele cansava de dizer: “No dia que merda der dinheiro, menino de pobre nasce sem c..”. Um dia ele me pediu emprestado trinta mil réis, que aliás ele bebeu em um dia e meio. Ele estava muito orgulhoso de sua bela letra e com muita facilidade assinou um documento cheio de carimbos da fazenda como garantia para saldar sua dívida. Poucos meses depois, cobrei de Joaquim a “fortuna” que ele me devia, mostrando o documento tão bem assinado. Ele, evidentemente, negou a dívida, chorou, afobou-se até que eu rasguei o tal documento, depois de dar uma bela lição de moral.
Não adianta eu me prolongar muito, pois o governo quer acabar com a burocracia, no que faz muito bem.
O capacete de guerra não acabou com meus cabelos, mas o meu crânio ficou pelado nesses numerosos anos passados no sertão – Atualmente, radicado em Fortaleza, estou arrancando o resto.
Hubert Bloc
**Texto de Hubert Bloc - Fotos escaneadas do álbum de família:
Foto dos companheiros do Rotary
Foto do batismo de Ernesto (irmão de Edilma Saraiva) de quem meu pai e eu somos padrinhos
Foto de Janine (esposa) - Huguette (mãe) e Hubert
Foto de Hubert ainda jovem (na Serra Verde), com as filhas Claude e Dominique.