Debates se multiplicam a respeito do revolucionário ano de 1968. São muitas as visões daquele ano, pois intercontinental foi a sua tsunami política, social e cultural. Na América Latina aprofundaram-se as ditaduras; no bloco soviético uma contradição revisionista do leninismo e a repressão na periferia; na Europa muitos foram os caminhos alguns descambando em violência terrorista e outros em mudanças profundas; nos EUA, o centro do império Ocidental, lutas pelos direitos civis, a revolução dos costumes, a consciência ecológica nascia e a rebeldia tomando a guerra do Vietnã como referência. Na China a radicalização da revolução cultural; no Japão lutas da juventude e os grupos armados. O mundo todo se moveu. E nele viajava eu.
Nos três anos que o antecederam a paisagem do Crato já mudara. Eis que a velha guarda do vozeirão, do samba canção e do regionalismo a moda Gonzagão se eclipsa. Os cabelos compridos dos homens invadem profundamente a paisagem, em poucos meses já se vêm cabeludos até nos recantos mais distantes dos sertões. Conjuntos e vozes solo dedicados às versões de canções americanas, italianas e francesas. Os Beatles surgem como um fenômeno mundial, invadindo as conversas das tradicionais famílias. O samba muda de tom, um violão e um banquinho, uma voz de pé de ouvido, uma batida diferente, um linguajar outro. O cinema desce profundo na alma da nação e seus conflitos mais internos em fase de decomposição. Lentamente o universo rural, que sobrevivera além da industrialização, aquele clima geral bucólico, que parecia eterno, torna-se passadiço.
As lutas estudantis. Nos anos 65 a 67 a vida da minha família reverteu-se. Ou melhor, numa mistura entre nada mais é ou será igual ao mesmo tempo em que seremos nós. 1965 foi um ano muito duro logo no início, em janeiro. Minha mãe aos 38 anos de idade, morre de parto do sexto filho. A criança sobrevive e a cidade choca-se com aquele drama. Já no final daquele ano uma outra turma de crianças, quase que duplamente órfãs entra para o nosso convívio. São os filhos de Miguel Arraes: Gusto, Guel, Maurício, Marcos, Lula, Nena e Mariana. Entre tantos a adolescência faz seu rito de passagem.
1966: as lutas estudantis. Deixo o Colégio Diocesano, nela aprendera o bê-a-bá e viera até o que corresponde à oitava série atual. Vou para o Estadual Wilson Gonçalves. Grande ano. Turma mista, grêmio cultural, jornal mural e uma peça de teatro: Calabar. A questão da traição. E do amor também. Era conseqüência natural: Ângela Brito, magrinha, conversa complexa, um limiar entre o cotidiano e as alterosas de segredos femininos. Paixão arrasadora. Pensei que iria morrer quando ela não me quis. Mas eu me quis como ser entre a perda e o achado, um ser como outros. Foi bom me saber igual aos samba canções, as dores de cotovelo. E a Toinha Lacerda da qual me perdi e nunca mais soube o seu futuro, que agora espero seja presente, ao que suponho em algo como Brasília. E a Leni, Iracilda, Cori, Gordo Leonel, Marcondes, José Vagner, Alberto Teles. E a outra turma. Grande ano estudantil aquele.
1967: ano militar. Quando a ditadura reduzia seu ritmo, as reivindicações se ampliavam. No Crato ainda se dançava dois a dois, mas se entremeava com a separação dos casais no ritmo da juventude. Enquanto fazia o Tiro de Guerra, provocava os sargentos, rastejava e éramos presos, ainda fomos treinados em guerra de guerrilha. A ingenuidade militar, o próprio exército treinava prováveis guerrilheiros nas táticas dela mesmo. Brinquei de guerra, como guerrilheiro, com um fuzil FAL, em plena floresta da Chapada do Araripe atirando com festim na coluna militar que vinha do Maranhão. Nisso criamos um Jornal de estilo tablóide, fizemos a encenação do Auto da Compadecida em Crato, Juazeiro e Missão Velha. O ponto era o Haroldo Correa, a Nossa Senhora era a Aline, o Jesus Negro o Pelé, Zé Gonçalves o palhaço, Cori o Sacristão, Zé Vagner João Grilo, Almirzinho era Chicó, Dion o Padre, Leonel o Bispo e assim por diante. Foram meses de ensaio e a meta era uma única apresentação. Mas após tanto tempo juntos era impossível separar aqueles jovens e demos gás para motivar nossos encontros.
1968: adeus ao Crato. Numa madrugada precoce. Três da manhã de trem até Fortaleza. Estudar para o vestibular de medicina no Colégio Castelo Branco. Fui arrancado do chão como se faz com um pé de verdura. Com raiz e tudo. A terra caririense ainda se espalhando das minhas conexões de alimento. Mas era um mundo acelerado. A música popular brasileira era de uma exuberância surpreendente: entre 65 e 67 surgiram Chico Buarque, Caetano, Gil, Gal, Betânia, Edu Lobo já era nome, Jorge Ben, Nara e entra como chuva de meteoros a geração dos festivais. O teatro revolucionava, o texto do jornal também, a filosofia era referência, Freud racionalizava a mente humana, a ideologia política uma necessidade para a preparação do jovem. E tome estudo. Ainda com a areia caririense caindo das minhas raízes arrancadas.
Tudo passou a ter sentido. A avalancha de conhecimentos novos: ciências, cultura e artes, psicologia, antropologia, cinema, debate, discurso, biografias de revolucionários, filosofia. Isso não seria possível para quem deveria estudar para um concurso efetivamente difícil. Fortaleza tinha uma única faculdade de Medicina, era a única do Ceará. Mas o mundo girava a mil, na conversa, lia sem parar, discutia sem fim, ainda ia ao cinema, participava de algumas reuniões no Diretório Central dos Estudantes, organização das passeatas. Ali vi e conversei com José Genoino que era o presidente na época. Isso sem contar o banho de mar, as novas namoradas, as tertúlias de subúrbio. Numa época que não se tinha carro e a noitada virava até o horário em que os ônibus reiniciavam a circulação.
Entre setembro e agosto recebi a visita da minha turma que deixara no Crato: Joaquim, José Almino, Almirzinho e Alfredo. Rodamos pela madrugada de Fortaleza. Ainda tínhamos as nossas carteiras de "jornalistas" (do nosso tablóide) e no clube América numa festa, sem pagar ingresso, ainda fomos anunciado pela sociedade presente. Pura brincadeira de jovens. Lembro-me bem de uma madrugada na beira mar, deitados sobre um pequeno gramado, conversando a respeito do futuro com Almirzinho. Ele ocupava uma liderança no movimento estudantil do Crato. 1968 era o ano do movimento estudantil. Estava no Colégio Castelo, era noite, no cursinho, quando um parente trouxe um bilhete da minha tia, comunicando que Almizirnho tinha se suicidado.
Em pleno outubro de 1968, sentia no coração desesperado, a mesma sensação com a qual começara 1965. Almirzinho era um ou dois anos mais novo que eu, mas tínhamos sido criados juntos. Eu era o primo do sítio e ele o meu primo da cidade. Como eu não tinha irmão da mesma idade, tivemos uma relação de irmão, assim como ocorreu com outro primo chamado Nivaldo.
Em quatro anos passei por todos os mitos vividos nos contos de fada, na literatura de ficção, no mundo narrativo humano afinal: a perda precoce da mãe e o jovem que desistiu da vida. Pois 1968 foi o marco após o qual tudo o mais foi diferente. Como narrativa de um território abandonado, de rito de passagem da adolescência, do conflito político e social, dos eventos mítico entre Eros e Tânatos, da exuberância cultural brasileira e do ano que terminou com o AI 5 e o Decreto 477 que nos ameaçou na faculdade daí por diante.